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O que é o Acordo de Glasgow?

A iniciativa subscrita por mais de 70 organizações e movimentos de base na luta pela justiça climática de todo o mundo compromete-se a criar planos próprios para a transformação produtiva e social necessária para travar o colapso climático.

Há uma crise monumental, que ameaça as condições reais de viabilidade para uma maioria das populações humanas nas próximas décadas, a crise climática. Há três décadas que governos e instituições se reúnem anualmente (e também nos intervalos) para procurar uma solução para esta crise existencial e, ao contrário do esperado, os factores que desencadearam a crise não só não se reduziram como aumentaram - as emissões de gases com efeito de estufa em 2019 foram as mais elevadas de sempre. Há um movimento social enorme, com uma articulação global e que exige que esta crise seja resolvida, mas que antes de mais teve de bater o pé, na forma de milhões de pés, para que a crise fosse sequer reconhecida como uma crise. No cruzamento destas três realidades - a crise climática, a impotência institucional e a potência social do movimento pela justiça climática - surgiu o Acordo de Glasgow.

O movimento pela justiça climática precisa libertar-se de um enquadramento político, estratégico e táctico que o amarra às limitações dos governos e das instituições. Não pode haver grandes confusões aqui: os governos e instituições actualmente existentes foram criadas ou adaptadas para garantir a estabilidade do sistema económico, para garantir que bens e capital fluam ininterruptamente, aconteça o que acontecer. É por isso que, em plena pandemia de covid-19, o governo dos EUA prioriza o resgate à indústria do fracking, os governos de todo o mundo resgatam o sector da aviação, resgataram a indústria financeira há pouco e fá-lo-ão de novo. Quase todos os governos (incluindo o português e a União Europeia) comprometem-se com metas climáticas que contrariam a Ciência. Também não é de estranhar que o governo russo anuncie que não vai reduzir a produção de combustíveis fósseis nas próximas décadas, apesar de reconhecer que existe uma crise climática e que a mesma tem como origem principal a queima de combustíveis fósseis.

Em capitalismo, os governos existem em grande medida para garantir a expansão das fronteiras históricas que permitam ultrapassar os obstáculos à acumulação de capital. Nesse sentido, instituições internacionais e governos fazem apenas aquilo que é lógico para continuar esta sua função: tentar resolver uma crise com as mesmas ferramentas que a criaram. Foi criado o Protocolo de Kyoto que, ao invés de exigir a redução de emissões de gases com efeito de estufa, mercantilizou-as e tornou-as uma nova fonte de criação abstracta de lucro. Uma década mais tarde, depois de as emissões globais terem aumentado 15%, foi assinado o Acordo de Paris, um acordo voluntário em que cada país propunha o seu próprio plano para cortar emissões de gases com efeito de estufa para manter o aumento da temperatura até 2100 abaixo dos 1,5ºC. Desde 2015, as emissões associadas à queima de combustíveis fósseis aumentaram 2,4%. Segundo nos informa a melhor ciência, precisamos cortar 50% das emissões globais de gases com efeito de estufa até 2030, tendo 2018 como ano de referência (ano do relatório dos 1,5ºC do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, das Nações Unidas), o que significa um corte de mais de 7% das emissões por ano esta década. Não há nenhuma proposta entre os maiores emissores do mundo que cumpra isto. Entre a fundação do IPCC, em 1988, e hoje, as emissões de gases com efeito de estufa quase duplicaram. Dizer que governos e instituições estão a falhar no combate à crise climática talvez seja o maior eufemismo da História da Humanidade.

No ano passado, o movimento global pela justiça climática levou às ruas milhões de pessoas, de forma reiterada. As greves climáticas estudantis foram a grande onda de fundo e a radicalização de grupos como Extinction Rebellion ou Ende Gelaende consolidou os movimentos que já antes se mobilizavam por este tema. A crise climática deixou de ser apenas medida através de termómetros e produziu um movimento de massas. Este movimento potente esbarrou contra uma parede aparentemente inamovível: o poder político que dá a mão e representa os interesses económicos do business as usual. Este poder apoia a economia fóssil suicida e/ou as falsas soluções do capitalismo verde, que mais não são do que a mercantilização da catástrofe. Este choque ficou mais claro que nunca na última cimeira do clima, a COP25. Meio milhão de pessoas manifestava-se nas ruas de Madrid, enquanto dentro das paredes da negociação institucional, tudo foi paralisado pelos governos fósseis - agregados na aliança Estados Unidos - Arábia Saudita - Rússia - Brasil. O clamor popular, replicando o consenso científico, não teve qualquer eco dentro das instituições e as negociações quase colapsaram. Há quem queira transpor a impotência institucional para dentro do poderoso movimento pela justiça climática, mas fazê-lo hoje é garantir o colapso.

No próximo dia 16 de Novembro será assinado o Acordo de Glasgow, uma iniciativa subscrita por mais de 70 organizações e movimentos de base na luta pela justiça climática de todo o mundo. No cruzamento da crise climática, da impotência institucional e da potência social, o movimento procura quebrar os constrangimentos da realpolitik de hoje, porque a realpolitik é incapaz de perceber ou resolver a crise climática e, portanto, guiar-nos-á ao colapso. Estas organizações comprometem-se a criar planos próprios para a transformação produtiva e social necessária para travar o colapso climático. Os subscritores comprometem-se em criar um inventário de emissões de gases com efeito de estufa que não seja abstracto, mas que diga exactamente que instalações energéticas, que explorações agro-pecuárias industriais, que quantidade de transportes, que fábricas têm de ser fechadas, redimensionados ou profundamente modificadas. Comprometem-se em criar agendas climáticas nacionais, com planos de ação para levarem a cabo o corte de 50% de gases com efeito de estufa a nível global até 2030. Isto implica, segundo uma perspectiva de justiça climática, que quem mais emitiu historicamente tem de cortar muito emissões do que quem quase não emitiu. Para Portugal implica um corte acima dos 70% até 2030 (em relação a 2018). Mas a agenda climática vai além de emissões e implica questões de justiça social, emprego, economia dos cuidados, dívidas climáticas e ambientais. Estas organizações e movimentos sociais comprometem-se em criar planos que, ao contrário do Acordo de Paris, sejam desenhados para funcionar, articulando ciência climática com justiça social.

Não há mais tempo para esperar pelos gestores do colapso. Estes governos e estas instituições são os mordomos do fim da civilização humana. O movimento pela justiça climática tem a tarefa de travar o suicídio da civilização. Pode parecer hercúleo, e é, mas se este movimento não o fizer, nenhum outro o fará.

Artigo publicado no Público a 6 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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