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Uma auditoria para o Novo Voto

A dignificação da classe política é, mais do que nunca nos dias de hoje, um propósito fundamental para que a mesma se possa colocar a milhas de distância e, consequentemente, a salvo e protegida dos piores populismos que crescem à custa da demagogia e autoritarismos vários.

Mais do que nunca, importa que a "boa política" acredite que é possível proteger o espaço de representatividade para o qual foi eleita. O respeito que granjeará para o futuro é uma conquista permanente que se arruína e desmancha como um baralho de cartas em desequilíbrio, a partir do momento em que se perde a noção do ridículo pelo contorcionismo de dizer uma coisa hoje e o seu contrário amanhã.

A proposta que o Bloco de Esquerda conseguiu fazer aprovar nos momentos finais da votação do OE 21 e que impede a transferência de mais 476 milhões para o Novo Banco, corresponde a uma das suas principais reivindicações nas negociações com o Governo com vista à viabilização do documento orçamental e vai ao encontro do que sempre foi dito sobre o absurdo da venda à Lone Star. Foi, aliás, uma das fundamentais razões da clivagem: para os bloquistas, nem mais um euro para o sorvedouro do Novo Banco, sem que primeiro se faça uma auditoria séria a um buraco negro que já custou 4,9 mil milhões de euros para o BES e 3 mil milhões de euros para a Lone Star. Um escândalo a céu aberto, coberto pelos bolsos dos contribuintes, sem explicações, sem razoabilidade, sem escrutínio.

Como António Costa defendia em Maio no Parlamento, "até haver resultados da auditoria, não haverá qualquer reforço dos empréstimos do Estado ao Fundo de Resolução". Cumpra-se, agora, contra a sua nova vontade. A teoria da irresponsabilidade e do fatalismo perante o jugo das instituições europeias, esconde um enorme desejo de fazer de conta. Fazer de conta que a responsabilidade não tem um preço. Para além dos contratos firmados, está em causa uma gestão potencialmente ruinosa que ninguém explica e que, não fosse agora travada, seguiria inevitavelmente a sua marcha. Se a auditoria do Tribunal de Contas nada assinalar, recolocar-se-á em marcha o plano de transferência de capital. Quem tem medo da verdade, esconde-se atrás do papão da inevitabilidade, ainda que assista a um saque.

O enorme drama e a imensa farsa é que a aprovação desta medida se faça com a total descredibilização de alguns políticos que não se cansam de querer dar "banhos de ética" ou clamar por "vergonha" perante tudo o que mexe. O PSD Madeira mudou o seu sentido de voto por duas vezes. André Ventura conseguiu o recorde, digno de registo, de mudar o seu sentido de voto por três vezes em apenas 12 horas: contra na especialidade, abstendo-se na primeira votação no plenário, acabando por votar a favor, segundos depois, quando se apercebeu que a proposta ia passar. Mais uma espinha dorsal que se dobra para a beleza da fotografia. O que podemos chamar a isto? Podemos chamar, pelo menos, uma auditoria.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 27 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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