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Poucochinhologia

O governador do Banco de Portugal sugere deixar as empresas falirem e limitar o apoio ao emprego só a alguns casos. Tudo na margem, tudo poucochinhamente.

Mário Centeno não sabe fazê-lo de outra forma senão com estrondo, e a sua intervenção na conferência desta semana do Banco de Portugal nem disfarçou os recados ao Governo e ao Parlamento sobre o Orçamento. Marcou as balizas, questionou os ritmos e os crité­rios. E se a sua proposta não é exatamente a do Governo, é inspirada pela mesma ideia: fazer o menos possível que possa ficar, remendar o que for inevitável e seguir em frente. É uma estratégia errada e arriscamo-nos a pagar a curto prazo este poucochinhamento das políticas de resposta à crise.

Liquidar tudo

Quando o mundo viveu a maior crise do século XX, o Presidente norte-americano era Herbert Hoover e o seu ministro das Finanças era o banqueiro Andrew Mellon. Conta Hoover nas suas memórias que Mellon lhe explicou que a resposta ao colapso das bolsas era deixar falir a atividade económica para purgar a sociedade: “Liquide-se o emprego, liquidem-se as ações, liquidem-se os agricultores, liquide-se o imobiliário. Isso purgará a podridão do sistema. As pessoas trabalharão mais, viverão uma vida moral. Os valores serão ajustados e as pessoas empreendedoras ficarão com os despojos das pessoas menos competentes.” Hoover conta ainda que Mellon terá insistido que, “quando as pessoas passam por uma experiência de inflação, a única forma de a tirar do seu sangue é deixar colapsar (a economia)” e “mesmo uma situação de pânico pode não ser uma coisa má”. O Presidente concordou, e foi assim que a sua Administração atuou: não fez nada. Um terço dos bancos foi à falência e o desemprego atingiu um em cada quatro trabalhadores. Esta é a solução liberal para uma crise, o mercado que funcione e enterre os seus mortos.

Quatro anos depois, Roosevelt foi eleito para fazer o contrário, controlar a especulação bancária e criar emprego. Essa passou a ser a receita recomendada para responder à crise. Até que as soluções liberais voltaram a dominar no nosso século, com os remédios da austeridade expansionista: privatizar, garantir rendas financeiras e baixar o valor do salário. A troika e Passos Coelho foram os seus profetas entre nós.

O problema está dentro de casa

A geringonça de 2015 reverteu essa política, gerando alívio na sociedade. Mas quando chegou o momento de mudanças estruturais que anulassem a jaula troikista, o Governo recusou-as. Assim, se agora Centeno explica que, “mais do que nunca, as novas políticas devem atuar na margem”, está simplesmente a reforçar a sua doutrina anterior como ministro, não façam nada que altere as regras que a troika deixou. Mas o curioso, na sua frase, é mesmo o “mais do que nunca”. Nunca e agora mais do que nunca? Agora que há 10% de desemprego e a subir, agora que teremos dois anos de queda do PIB, agora que temos danos permanentes na economia? Centeno explica-nos assim que, perante a crise, devemos fazer alguma coisa, ao contrário do que pensam os liberais, mas pouco, ao contrário do que propõe a esquerda. E foi esse o seu recado.

No escasso detalhe que indicou, o governador do Banco de Portugal sugere deixar as empresas falirem e limitar o apoio ao emprego só a alguns casos. Tudo na margem, tudo poucochinhamente. O Governo responde de forma diferente, aceitando que deve haver apoios (mas não paga alguns dos que aprova), que são urgentes (mas atrasa-os), embora, como Centeno, não aceite que se toque na lei laboral, ou seja, nas regras para despedir ou para os contratos de trabalho. Tudo pela margem, portanto. A doutrina da margem é o que une Centeno e Leão.

É para empurrar as soluções para a margem que o Governo nem aceita normalizar as relações de trabalho, nem um investimento estrutural no SNS. Prefere comprimir as despesas de resposta à crise em soluções temporárias, que possam entrar nos fundos europeus, para em 2022 reduzir o défice com novas restrições. Pouco agora e menos no ano seguinte é uma solução para desastre.

Tempo para ter cuidado

Deste modo, fazer pelo mínimo é o critério de Centeno. Ele repete que a crise é ligeira e passageira, nem de outro modo poderia explicar ter abandonado o ministério no meio da tempestade. Mas quer que se faça pouco porque é assim que entende a economia. Ora, há duas razões para fazer mais e para fazer já. A primeira é que a crise é estrutural: qual é a dúvida de que alguns sectores não recuperarão em 2021 e que o desemprego aumentará? É também estrutural nos serviços públicos, em particular no SNS, e sobre isso tenho escrito aqui.

Há ainda uma segunda razão para agir já, os riscos internacionais. E são cinco: o ‘Brexit’, que se pode arranjar ou não em poucos dias, o veto da Polónia e Hungria ao pacote de subsídios aos Estados pelo esforço de 2020, as eleições na Alemanha em 2021, a crise política na transição da Casa Branca e ainda o enigma financeiro. Deste último tem-se falado menos, os índices bolsistas vivem deslumbrados pelos máximos históricos, que provaram ser imunes a Trump e à pandemia. Mas Robert Shiller, Prémio Nobel da Economia em 2013 e uma voz que costuma ser solitária mas certeira, veio há um mês recomendar prudência: “A crise do coronavírus e as eleições de novembro elevaram os receios de uma grande crise bolsista aos níveis mais altos de muitos anos. Ao mesmo tempo, o valor das ações está no máximo. Esta combinação volátil não significa que vá haver um colapso bolsista, mas sugere que o risco de isso acontecer é relativamente grande. Este é um tempo para ser cuidadoso.” (23 de outubro, “New York Times”.) Nota Shiller que só em 1929 e 2000 é que houve um tão grande desvio entre a capitalização e os lucros das empresas e que isso indica uma bolha que pode explodir.

Esperar é imprudente, o tempo não é bom conselheiro.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 20 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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