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Estamos encurralados entre o ódio e a censura?

Sendo a liberdade de opinião um valor constitutivo da vida democrática: como qualquer outro órgão de comunicação, a rede social deve ser responsabilizável pela informação que veicula, bem como a pessoa que a emite.

Samuel Paty, o professor francês que foi decapitado por um fanático depois de ter falado aos seus alunos sobre a censura, foi das mais recentes vítimas de uma campanha de ameaça nas redes sociais. O assassino não o conhecia e não tinha relação com aquela escola, mas decidiu o crime pelo que leu na rede. O mesmo tipo de discurso de ódio já tinha ocorrido contra a minoria rohingya em Myanmar ou contra pessoas que na Índia e no Paquistão foram chacinadas por multidões por instigação de vizinhos, entre muitos casos desconhecidos. A vulnerabilidade das redes sociais a esta ecologia da morte é um dos factos marcantes na sociedade do medo: o crime sai do segredo para exibir uma justificação, torna-se um poder público.

Há, no entanto, alguma mudança em curso. A densa campanha de responsabilização das empresas que gerem as redes sociais está a fazer alterar o seu comportamento. Essa modificação é provocada pela perceção social: dois terços da população norte-americana reconhecerão agora que as redes podem ser perigosas. Isso pressionará mais ainda as empresas, que até agora têm defendido as suas práticas com a alegação da liberdade de opinião. Nessa narrativa, cada qual pode dizer o que quiser, mesmo para promover um crime, é da sua exclusiva responsabilidade, e a plataforma que divulga a mensagem é sempre inocente. Ainda não chegaram aos tribunais acusações sobre a cumplicidade no crime por parte da rede que publicou a campanha contra Paty, mas virá o dia.

Pode-se perguntar se estamos presos entre a solução chinesa de restrição total, através do controlo pelas autoridades sobre o discurso e a opinião, ou a liberdade sem restrições, que implicaria o custo de aceitar a promoção do discurso de ódio que marca as sociedades modernas. Ora, é evidente que a resistência das empresas a ceder o controlo das suas redes a uma regra universal está hoje enfraquecida. O Facebook, a mais agressiva dessas redes, começa a temer a viragem da opinião pública. E, sendo a liberdade de opinião um valor constitutivo da vida democrática, o que exige a responsabilidade de cada um pela sua escolha, é nessa equação que está a única solução aceitável: como qualquer outro órgão de comunicação, a rede social deve ser responsabilizável pela informação que veicula, bem como a pessoa que a emite. É tempo de abolir o anonimato e estender às redes a mesma regra que se aplica ao jornal que tem nas suas mãos.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 7 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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