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O que ficará para sempre é que tentaram

Há quatro anos, imprevisibilidade e loucura eram dois predicados que ninguém negava a Donald Trump. Nos dias de hoje, de Trump só resta o que tem de louco e de incendiário.

A abominável história do circo eleitoral montado pelo presidente dos EUA e respectivo séquito é o seu primeiro acto de insânia que não constitui surpresa para ninguém. Se ainda assistimos, atónitos, a algo que o aproxima da inimputabilidade - ou não víssemos como desfila como um sociopata presidencialmente habilitado - é porque andámos distraídos ou entregávamos demasiado crédito ao poder da vergonha. O facto da campanha de Trump recorrer aos tribunais em vários estados e pedir recontagem de votos no Wisconsin e Michigan, incluindo a recontagem dos "mail-in ballots", é a admissão prática de que esses votos efectivamente contam.

Tudo o que Trump agora diz ou faz, profetiza ou insinua, foi sistematicamente preparado, anunciado e replicado nos últimos meses, de forma persistente, evidente e pública. Nada há de imprevisível nesta charada eleitoral de Donald Trump. E, como defende Paul Krugman, o que ficará para sempre é que eles efectivamente tiveram a coragem de tentar. Tentaram tomar o poder alegando uma fraude eleitoral sem provas, com dificuldades artificialmente criadas por antecipação na contagem de votos em estados republicanos, com bloqueios e cortes nos serviços postais e preparação pós-eleitoral no Supremo Tribunal através de nomeações instrumentais à perpetuação do poder. O que era impensável.

Esta coisa peregrina de não se contarem todos os votos em eleições democráticas atira-nos para um patamar de insanidade "à la Burkina Faso" que até para a acólita "Fox News" é embaraçoso. Aliás, a prudência e cuidado noticioso desta estação, assim como a atrapalhação que corre em boa parte do partido republicano, são alguns sinais que nos indicam que a tenebrosa aderência ao poder de Trump, perdendo as eleições, não deverá ter muito caminho a fazer. Ainda que a questão no Supremo Tribunal possa ser controvertida face ao actual (des)equilíbrio das forças, a grande questão prender-se-á com a perigosidade. Se a renovação do mandato presidencial de Trump seria um sinal inequívoco de que o Mundo deveria tentar esquecer a América de vez (como se fosse possível...), ainda ninguém adivinha como se poderá lidar com o perigo de ter Trump a propagar-se fora do poder, estrebuchando por uma vitória inexistente perante uma horde de fiéis incendiada e armada nas ruas por anos de complacência e estímulo aos sectores mais irracionais e extremistas da sociedade norte-americana.

Análises para depois dos resultados finais. Mas aconteça o que acontecer, e mesmo com uma mobilização recorde nas urnas face à polarização existente, Trump não foi repudiado pelos americanos como deveria ter sido. Mesmo com Biden eleito, a ferida continuará aberta. Com Trump do lado de fora, talvez a sangrar ainda mais profundamente. Uma espécie de guerra civil preparada em lume brando por Trump nos dois últimos anos, sobretudo após o advento da pandemia. Pandemia, essa, à qual podemos agradecer, evangelicamente: "Senhor, livrai-nos do mal". Aleluia. Porque a ela, maioritariamente, se deve. Aleluia. Pensemos nisso como penitência. E oremos.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 6 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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