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Quatro sugestões para algum bom senso

Cinco anos cansam um Governo, e isso é compreensível, mas não é agora tempo de ajustes de contas. Portugal dispensa manobras que nos desviem do essencial.

Os sinais destes dias são muito contraditórios. No continente, o PS acusa um partido com que não se entende de trair a esquerda; nos Açores, parece procurar uma aliança com o CDS. No Parlamento, o primeiro-ministro dá por seguro o voto de outro partido que garantiria a aprovação do Orçamento, mas isso não o impede de lhe prodigalizar mesuras que o menorizam, de tão infantilizadoras. Arrisca, assim, um jogo perigoso para a votação final: ou consegue esse voto, exibindo uma aparência de subordinação que é uma injustiça histórica para o PCP, ou condu-lo a repelir esse acordo e destroça a sua narrativa sobre a convergência negocial. Uma relação em que há um perdedor não é uma aliança.

Há em tudo isto particularismos emocionais que escapam à razão e que parecem emergir de catacumbas de seculares agravos, mas não são surpresa para quem se lembre da campanha eleitoral de há um ano. Além do mais, cinco anos cansam um Governo, e isso é compreensível, mas não é agora tempo de ajustes de contas. Portugal bem dispensa manobras que nos desviem do essencial da resposta às pandemias sanitária e social. Por isso junto de seguida algumas sugestões nesse sentido de ir ao essencial, pois estou convencido de que há solução para cada um dos quatro principais pontos de conflito entre o Governo e a esquerda. Assim, caros leitores, este texto é um argumento interessado no remédio que se deveria encontrar.

O tabu financeiro

É particularmente evidente nas últimas décadas da política nacional que o PS, o partido central e mais duradouro no Governo, considera que há duas áreas tabu em que não é permitido um acordo com as esquerdas: as leis laborais, zona exclusiva de entendimento com associações patronais, e a gestão das regras financeiras, reservada aos acionistas bancários e seus advogados. Nenhum desses tabus foi beliscado e as desastrosas vendas do Banif e do Novo Banco demonstram-no, tal como o reforço das normas da troika na lei do trabalho. Ora, como essas matérias estão agora em cima da mesa, poderia pensar-se que todas são muros intransponíveis para o Governo. Sim e não. O Governo não aceitará, por razões ideológicas e de aliança social, mexer no essencial desses tabus. Mas, mesmo assim, poderia encontrar soluções praticáveis para viabilizar um acordo no Orçamento.

Creio que só falta vontade de sair deste pântano de quezílias e de propor as medidas que levantam o país na emergência. E isso devia ser o mais fácil

Veja-se o caso do pagamento à Lone Star em 2021. Depois da revelação das vendas a desconto de centenas de milhões de euros, e ainda está por saber o montante das comissões destas operações e quem as recebeu, é impossível que a esquerda aceite o pagamento desse prejuízo. Sabendo que o Parlamento aprovará a suspensão da verba até à auditoria do Tribunal de Contas, o Governo tem uma solução razoável: retirar deste Orçamento o pagamento pelo Fundo de Resolução e, caso o Tribunal o venha a confirmar depois, geri-lo então num Orçamento suplementar, que aprovará com a direita (se a auditoria o recusar, é escusado lembrar que a operação cai). É prudente fazê-lo assim, pois pode vir a precisar desse suplementar, em todo o caso, se a Lone Star exigir mais dinheiro (e o Governo pagará). A esquerda teria o seu ganho agora e não haveria razão para se opor ao Orçamento para 2021 nesta matéria, votaria depois contra esse suplementar, ficando do lado do Governo o ónus de procurar uma maioria quando chegar o dia do pagamento, em maio.

O tabu laboral

O Governo tornou cristalino que não aceita mexer nas leis laborais da troika. Mas há duas áreas em que dificilmente pode recusar uma alteração. A primeira é a caducidade das convenções coletivas, o que tem permitido às associações patronais destruir os contratos que querem. Ora, o primeiro-ministro concorda que esse princípio é injusto. No debate orçamental, disse, em resposta a Os Verdes: “A garantia que demos protege três milhões de trabalhadores com a moratória da caducidade das convenções coletivas que assegura a proteção durante dois anos, evitando que os trabalhadores sejam forçados a renegociar a contratação coletiva numa situação de fragilidade e que, numa situação de crise, vejam a sua posição negocial reforçada para manter o diálogo social e a negociação.” Dá-se que os dados do Governo indicam que a medida abrange 46 mil trabalhadores, e não três milhões, mas essa inflação é explicável pelo entusiasmo oratório. O que me importa é o argumento: se a caducidade fragiliza a parte mais fraca, porque haverá de ser restabelecida como uma guilhotina dentro de dois anos? Ao denunciar a injustiça, o Governo mostra que nesta questão podia revogá-la, chegando a um acordo com a esquerda.

Outro ponto em que esse acordo seria possível é o tempo do período experimental. É uma questão sensível para o PS, já tinha proposto a duplicação desse período para os jovens, o que foi chumbado pelo Tribunal Constitucional; voltou a impô-lo depois, para todos. Só que o Tribunal está a apreciar a questão de novo e é sabido que muitos juízes terão reservas. Esta regra promove a desqualificação e a rotação do emprego, é por isso uma forma de degradar a economia e prejudicar os jovens. Não vejo qualquer razão para que o Governo não acerte esta matéria com as esquerdas.

A prioridade SNS

Creio, portanto, que o Governo teria uma solução, formal que seja, para o imbróglio político do Novo Banco, e que o bom senso recomendaria um acordo para o fim da caducidade e a redução do período experimental. Haverá outras questões ainda, mas as que noto que cristalizam dificuldades especiais são o apoio social de emergência e a contratação de profissionais para o SNS. Talvez esses temas sejam mais difíceis do que os anteriores. Não me vou referir aqui à questão da condição de recursos ou da inclusão de trabalhadores independentes ou precários nos apoios contra a pobreza, embora note que o Governo já cedeu em várias ampliações do universo protegido, mesmo que se recuse a alterar as condições estruturais, onde estão alguns dos principais engarrafamentos.

No entanto, é o SNS que é a questão mais importante de todas, porque a pressão é gigantesca e pode crescer nos próximos meses. O Governo foi, aliás, sensível à necessidade de ter mais profissionais no SNS e, mesmo antes da pandemia, aceitou que faltavam pelo menos 8400. Não cumpriu o compromisso de os recrutar, o que certamente pesa na desconfiança nas negociações, mas talvez agora seja só tempo de cuidar do futuro. E se toda a gente ficou chocada com a agressividade no debate parlamentar sobre o SNS, eu notei bons sinais de esperança em soluções: os ministros não contrariaram que haja menos médicos agora do que em janeiro, quando a pandemia chegou à Europa (só pediram que se faça a conta em janeiro próximo). O primeiro-ministro, mais solto em relação aos factos, insiste triunfantemente em que há mais médicos, mesmo que o portal do SNS dê os números exatos: em finais de setembro, são menos 918 do que em janeiro. Houve depois, em outubro, um concurso para médicos familiares, em que entraram 284 (de 435 lugares oferecidos). E há um concurso a concluir-se para quem acabou a especialização (911 lugares, mas são sobretudo pessoas que já estão no SNS). Assim, chegaremos ao fim do ano com menos médicos do que no início. É simplesmente a questão decisiva do SNS. Sem médicos e outros técnicos os hospitais param.

A solução está no programa do PS: carreiras atrativas e com condições de exclusividade. Só assim haverá mais médicos. Seria um bom acordo para o PS, concretizaria o seu compromisso, aliás igual ao de toda a esquerda. Parecerá insólito que não aplique o seu programa, que tem a resposta estrutural a uma dificuldade estrutural. Mesmo que seja isso que está a tornar-se o principal obstáculo, o bom senso que a emergência aconselha levaria a pôr o Orçamento ao serviço do SNS. Se Costa o recusar, viverá com um fantasma em cada dia de 2021 e, sempre que fechar uma urgência, será lembrado que não quis os meios para ir buscar os médicos necessários.

O Governo mostraria grandeza ao convergir nestas matérias, formando uma maioria parlamentar para este Orçamento. Um acordo sobre estes quatro pontos é, portanto, possível. Creio que só falta vontade de sair deste pântano de quezílias e de propor as medidas que levantam o país na emergência. E isso devia ser o mais fácil.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 31 de outubro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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