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Faz sentido adotar medidas mais duras sem reforçar o SNS?

Se os privados continuam a ver aumentada a sua fatura ao Estado é porque estamos a tirar recursos da resposta pública. O SNS precisa de reforço humano, financeiro e material.

O Governo decidiu este fim de semana implementar novas restrições para combater a pandemia. Fez bem, face ao brutal aumento de casos positivos, de internamentos e de mortes a lamentar pela Covid-19, era imperativo adotar novas medidas.

As medidas que vão afetar 70% das pessoas em Portugal são particularmente fortes, como a obrigatoriedade do teletrabalho e o dever cívico de recolhimento domiciliário. A nossa casa passou a proteger-nos do vírus, mas já não é bem o nosso lar – é o nosso refúgio da pandemia, mas não o local onde nos sentimos realizados, porque isso acontece no trabalho, no espaço público. Voltar a casa vai ser penoso para todos nós e volta a ter impactos enormes na economia e na pobreza.

O Governo decidiu também a reativação dos hospitais de campanha para aumentar a resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a contratação de enfermeiros reformados. Mas a pergunta é inevitável: por que razão só agora, durante a segunda vaga da pandemia, se decidiu contratar estes profissionais? Onde irão buscá-los e o que vai ficar para trás?

O Governo não parece ter preparado a segunda vaga da pandemia. Não iniciou a tempo a contratação de médicos e enfermeiros para aumentar a resposta do SNS e não usou as ferramentas que tinha ao seu dispor para reduzir a pobreza de quem foi mais afetado pela primeira vaga. Ou seja, não usou os 4.500 milhões de euros do Orçamento Suplementar que o Parlamento aprovou e, como tal, os meios que temos para responder à segunda vaga e à crise social são menores.

Se dúvidas houvesse, saliente-se o facto de Portugal ser um dos países que menos investiu em tempo de pandemia – segundo dados da AMECO, ficou apenas à frente do Chipre e da Grécia em investimento público face à percentagem do PIB.

Mais, não se percebe que o Governo não tenha preparado o reforço da capacidade de resposta do SNS – apesar de ter as verbas aprovadas para isso – e que agora tenha decidido transferir doentes para os hospitais privados, depois da vergonhosa insistência de um conjunto de bastonários da Ordem dos Médicos.

Se uma lição a pandemia nos deu é que os países com serviços públicos mais robustos conseguem dar melhor resposta à atual situação pandémica. Não é isso que o Governo está a fazer com a Saúde: ao encaminhar os casos ‘não Covid’ para os privados, isso significa o “eldorado” final da externalização de milhões de exames e meios complementares de diagnóstico e terapêutica e cirurgias. Tudo isto terá um custo e trata-se de uma transferência de milhões de euros do erário público para grupos privados.

Se os privados continuam a ver aumentada a sua fatura ao Estado é porque estamos a tirar recursos da resposta pública. Toda a gente percebe que, em caso de um grande choque impossível planear, os governos usem os recursos dos hospitais privados. Mas neste caso era possível planear, o Governo teve todo o verão e não o fez. O SNS precisa de reforço humano, financeiro e material. Precisamos de dar mais condições às profissões da saúde, descongelar carreiras, dar uma carreira aos auxiliares, melhores condições de trabalho nos Hospitais, reforço das equipas de saúde pública.

Se já era preciso antes da pandemia, agora mais do que nunca. Muitos dirão que não há dinheiro. Infelizmente, aquela expressão que por aí se ouve sobre o clima assenta aqui como uma luva: se a saúde fosse um banco, já teria sido salva.

Com a “bazuca financeira” europeia temos oportunidade de investir estruturalmente no SNS, que é de todos. Sabemos as contas, sabemos o que é necessário. Esperemos para ver quanto custarão as transferências para os privados, caso avance o plano do Governo. E isto fazendo apenas as contas às necessidades de resposta do SNS à pandemia, pelo caminho não podem ficar as outras doenças e as cirurgias necessárias.

António Costa tem dito que as pessoas precisam de um abanão para serem mais responsáveis no combate à pandemia. Mas será que os números da pandemia são abanão suficiente para o Governo dar meios ao SNS e responder à crise social? Infelizmente, o que está no Orçamento do Estado para 2021 diz-nos que não.

Artigo publicado em “Jornal Económico” a 2 de novembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Engenheiro e mestre em políticas públicas. Dirigente do Bloco.
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