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Pandemia, polarização e resistência nos Estados Unidos

Nesta entrevista, Ashley Smith fala sobre a gestão trumpista da pandemia e a situação económica, o estado dos movimentos sociais, a campanha de Sanders e a posição da esquerda sobre Biden.
Bandeira americana numa vedação de arame farpado. Foto de Glen Zazove/Flickr.
Bandeira americana numa vedação de arame farpado. Foto de Glen Zazove/Flickr.

Joseph Daher: Quais foram os efeitos da Covid-19 sobre a situação sócio-económica dos Estados Unidos?

 

Estamos no meio de uma catástrofe humanitárias com as características próprias do Estados Unidos. Mais de sete milhões de pessoas foram infetadas pelo vírus, mais de 200.000 pessoas morreram e os peritos preveem que não menos de 400.000 pessoas poderão perder a vida daqui até ao fim do ano. A grande maioria de quem morre são pessoas idosas em lares da terceira idade, pessoas de cor e trabalhadores essenciais obrigados a trabalhar durante a eclosão da pandemia.

Claro que nenhum Estado-nação foi poupado pela devastação da pandemia. Todos foram obrigados pela lógica do capitalismo a reabrir as suas economias para acumular novos ganhos. Mas os Estados Unidos, tal como outros Estados igualmente dirigidos por governos de direita como os da Grã-Bretanha, Índia e Brasil, foram particularmente implacáveis colocando os interesses das empresas acima da salvaguarda de vidas humanas.

Nos Estados Unidos, como revelou o novo livro de Bob Woodward, Rage document, o presidente Donald Trump deliberadamente escondeu a gravidade da crise e chegou mesmo ao ponto de bloquear um plano elaborado pelos Correios para distribuir gratuitamente máscaras por via postal.

Trump colocou os lucros, a sua campanha de reeleição e francamente o seu ego em primeiro lugar, enquanto a vida dos trabalhadores e dos oprimidos foi relegada para último lugar.

Desde o início, este reticente no apoio a qualquer confinamento e rapidamente fez pressão sobre os estados para que reabrissem o mais rapidamente possível. Porquê? Porque a expansão económica sob sua direção era a única possibilidade de conseguir a reeleição.

Estes interesses económicos e políticas pessoais sujas levaram-no a negar e depois a gerir mal a crise e a rejeitar a culpa da catástrofe, lançando-a sobre todo o mundo, da China ao Partido Democrata. Orientou o seu discurso para a negação de factos científicos, as posturas machistas tóxicas contra a utilização de máscaras como sinal de fraqueza e um velho desprezo misantrópico pela classe trabalhadora e em particular as pessoas de cor para justificar a sua má conduta criminosa. Durante este tempo, os corpos acumulavam-se nas morgues de todo o país.

 

JD: Qual é a situação sócio-económica dos Estados Unidos?

 

É importante compreender que a economia mundial se dirigia para uma recessão ainda mesmo de ser atingida pela pandemia. As suas três potências – a China, os Estados Unidos e a União Europeia – mostravam já todos os sinais de uma crise iminente.

A Covid-19 foi portanto o detonador e não a causa da recessão mundial. A pandemia exacerbou de seguida a profundidade da recessão nos países do mundo inteiro. Nos Estados Unidos, forçou os estados e as cidades a impor confinamentos sobre todas as atividades económicas, exceto as essenciais.

A amplitude da crise económica é surpreendente. O PIB real dos EUA contraiu-se em 31,7% no segundo trimestre e em 5% no ano. O colapso da economia lançou 20 milhões de pessoas no desemprego, aumentando a taxa de desemprego até cerca de 15%.

Atualmente, ainda que a economia tenha começado a endireitar-se, vendo a taxa de desemprego cair para os 8%, milhões de trabalhadores continuam sem emprego e enfrentam despejos massivos por não terem podido pagar a hipoteca ou a renda.

O governo dos EUA apressou-se a tentar parar a queda da economia, como durante a recessão de 2007. A Reserva Federal lançou mais de 2,3 mil milhões de dólares na economia, reduzindo as taxas de juro, imprimindo notas e fazendo empréstimos aos bancos, empresas e governos dos Estados e município.

O governo federal injetou dois mil milhões suplemantares para manter viva a economia. Enquanto os democratas obtiveram benefícios importantes para os trabalhadores, como o aumento dos subsídios de desemprego e pagamentos individuais únicos de 1.200 dólares por pessoa, Trump e o Partido Republicano velaram para que o essencial do resgate fosse para às mãos das empresas, mantendo vivas vários tipos de empresas zombies que, de outra forma, teriam colapsado.

Mas, contrariamente às esperanças e previsões da burguesia, este plano de resgate não produzia uma retoma forte. A pandemia em curso forçou os Estados e as cidades a confinar-se temporariamente, impedindo o funcionamento económico normal.

Só que Trump e os republicanos recusaram criar um outro plano de relançamento económico. Estão reticentes em aumentar a dívida e o défice do governo e opõem-se ao aumento dos subsídios de desemprego e a pagamentos em espécie com base no mito segundo o qual isso levaria os trabalhadores a não procurar emprego.

Porém, o Estado salvou mais uma vez o capitalismo. Mas, fazendo-o, impediu a limpeza das empresas que não são rentáveis ao sistema, garantindo que não assistiremos a uma recessão profunda seguida de um forte ressalto de crescimento, mas a uma recessão prolongada, com muitas empresas produzindo muitas coisas que não conseguem vender a taxas de lucro suficientemente elevadas.

Estas condições intensificaram a profunda polarização política do país. À direita, Trump, ainda que não seja fascista, deu mais um passo com o seu discurso racista sobre “a lei e a ordem” contra o movimento Black Lives Matter. Deu igualmente luz verde às formações de extrema-direita e fascistas, que se desenvolvem rapidamente no seio da pequeno burguesia, de uma parte da classe operária e do lumpen-proletariado.

Apesar da gestão desastrosa da pandemie e da economia, Trump conserva o apoio de cerca de 40% do país. Esta nova direita está aí para ficar, qualquer que seja o resultado das eleições.

À esquerda, a pandemia e a recessão alimentaram a subida em flecha dos membros dos Democratas Socialistas da América (DSA) bem como vários tipos de formações emergentes à esquerda. Estes formam o núcleo de um novo movimento socialista nos meios estudantis, da classe operário e grupos oprimidos.

 

JD: Qual é o estado atual do movimento Black Lives Matter? Mantém ainda uma dinâmica?

 

O movimento Black Lives Matter deste Verão foi a maior vaga de manifestações da história dos Estados Unidos. Não menos de 26 milhões de pessoas participaram nas manifestações que atravessaram o país desde o assassinato racista de George Floyd pela polícia em Minneapolis. O vídeo da sua morte despertou a consciência de todo o país, levando a uma rebelião de massa.

É a segunda grande vaga do movimento. A primeira eclodiu em 2014 no seguimento do assassinato de Michael Brown em Ferguson, no Missouri, por polícias racistas, e de Eric Garner em Nova Iorque, em seguida explodiu depois do assassinato de Freddie Gray numa rebelião em larga escala em Baltimore, no estado do Maryland, o que forçou a cidade a chamar a guarda nacional para impor a ordem.

Esta segunda vaga é muito mais grande e, sob certos pontos de vista, mais radical do que a primeira. Desta vez, os militantes negros mobilizaram bastante mais apoio dos brancos que anteriormente. Houve manifestações contra o racismo policial não apenas nas zonas urbanas negras e de outras populações de cor, mas igualmente nos subúrbios e nas pequenas cidade de maioria branca do país.

Esta rebelião multi-racial dirigida pelos negros parece em grande medida espontânea mas no seu núcleo encontramos militantes das formações nacionais e locais. Os militantes negros estão organizados em grupos como o Movement for Black Lives, o Critical Resistance e muitos outros grupos nacionais e locais.

Para além deste núcleo, há uma corrente de massa organizada de maneira informal de jovens estudantes e trabalhadores que leram e discutiram livros anti-racistas e organizaram diversas ações nas suas escolas e comunidades depois da primeira vaga de manifestações. Assim, havia militantes pré-existentes, à espera, armados de ideias e também de cartazes, de faixas e de t-shirts Black Lives Matter.

A reivindicação central e radical do movimento é desmantelar a polícia. A ala esquerda do movimento é muito clara quanto ao objetivo ser a abolição da polícia no quadro de uma luta pela mudança de sistema através da luta coletiva das massas nas ruas, nas comunidades e nos lugares de trabalho.

Por outro lado, as correntes liberais e o Partido Democrata procuram conter este radicalismo, redefinir o “defunding” como simples cortes orçamentais nos serviços de polícia e redirigi-lo para o impasse da reforma da polícia e do investimento acrescido na formação da polícia. Os democratas esperar fazer o movimento sair das ruas e fazer campanha por Biden nas presidenciais. Desta forma, há uma luta no coração do movimento sobre a sua política, as suas estratégias e táticas.

O movimento provou uma vez mais que a luta social e de classe de massa é bem mais eficaz do que a política eleitoral para conseguir reformas. Conseguiu mais vitórias em alguns meses do que décadas de voto e de lobbying feito pelos democratas. Obrigou cidades a reduzir os orçamentos da polícia, a expulsar a polícia das escolas de várias cidades e a redirigir fundos para serviços sociais e para a educação.

Apesar destes avanços, estamos ainda longe de ter conseguido o desmantelamento da polícia e ainda menos a sua abolição. Ela continua a brutalizar e matar negros com toda a impunidade. A frustração face a esta situação forçou talvez a ação mais radical até à data – a greve levada a cabo pelos basquetebolistas profissionais negros da NBA – porque baseada na reivindicação da justiça racial. Interromperam as finais da NBA e despoletaram uma vaga de ações por parte das jogadoras da WNBA (a liga feminina), assim como de atletas em desportos com poucos jogadores negros como o basebol e mesmo o hóquei. Esta greve multiracial dos atletas abalou o país.

Enquanto a indústria do desporto fazia face a paragens de trabalhadores cada vez mais amplas, o antigo presidente Barack Obama interveio para ajudar a negociar um acordo de forma a que os jogadores da NBA voltassem ao trabalho. Os patrões do desporto prometeram apoiar o movimento pelas vidas negras e Obama encorajou os jogadores a ajudar os eleitores a votar por Biden.

Neste momento, o movimento está em declínio mas o massacre constante de negros e de outras populações de cor pela polícia continua a provocar explosões de protesto em diversas localidades. O frenesim sem fim de assassinatos policiais garante que o movimento explodirá uma e outra vez nos meses e anos por vir até que uma mudança sistémica seja ganha.

Por agora, contudo, a maior parte das forças organizadas estão envolvidas nas eleições para fazer campanha por Biden. Mas, longe de ser um apoiante do movimento, Biden opõe-se à sua principal reivindicação o “defunding” da polícia. Porém, a maioria não vê outra alternativa senão apoiá-lo de forma a vencer Trump.

Ao mesmo tempo, Trump diabolizava o movimento e mobilizava a sua base para apoiar a polícia. Colocou o seu discurso racista da “lei e ordem”, que faz referência à celebração da polícia, à repressão das manifestações e à caracterização dos negros como criminosos perigosos, no centro da sua campanha de reeleição e apoiou-se numa das piores demagogias supremacistas brancas da história da política burguesa moderna.

 

JD: Há outros movimentos que sejam influentes?

 

Desde a Grande Recessão, assistimos a explosões episódicas de lutas. Estas começaram com o Occupy, o movimento Black Lives Matter e um punhado de greves, sobretudo a do sindicato de professores Chicago em 2012 que inspirou as greves de professores nos anos seguintes.

Desde a sua eleição, Trump provocou um novo ciclo de protesto começando pela marcha das mulheres no início do seu reinado.

A partir daí assistimos a manifestações contra os seus ataques aos direitos dos migrantes e dos muçulmanos e a uma vaga de greves de professores, a começar pela revolta dos professores dos estados vermelhos em 2018, quando estes fizeram greve ilegalmente em vários estados controlados pelos republicanos. Esta revolta inspirou outros professores que organizaram greves em cidades controladas pelos democratas como Los Angeles, Chicago e Denver.

 

A pandemia e a recessão obrigaram os trabalhadores, em particular os trabalhadores negros e de cor das indústrias essenciais a tomar medidas para proteger a sua saúde. Os trabalhadores dos hospitais, das escolas, da Amazon e das fábricas de transformação de carne, para nomear apenas alguns, organizaram manifestações e, em alguns casos, greves para obter equipamento de proteção de individual e um prémio de risco.

Estamos claramente nos primeiros estádios de um crescendo de militância, depois de décadas de recuo, de derrota e de desorganização. Mas as principais instituições do nosso lado – as organizações do movimento social, as ONG e os sindicatos – estão fixadas nas eleições. Subordinam a construção da luta à política eleitoral na esperança vã de que a eleição de Joe Biden e dos democratas traga uma solução às catástrofes do capitalismo americano.

Contudo, as desigualdades crescentes do capitalismo americano obrigarão a base dos sindicatos e dos movimentos a criar organizações dispostas a fazer pressão para que haja níveis mais elevados de militância no ataque aos patrões e à extrema-direita. Estamos no primeiros estádios de toda uma época de crise, de polarização política e de luta.

 

JD: O que sobra do movimento? A esquerda pôde-se apoiar na dinâmica da sua candidatura?

 

A campanha de Bernie Sanders pela investidura presidencial do Partido Democrata foi uma das expressões contraditórias desta explosão episódica de luta social e de classe. De um lado, Sanders juntou os estudantes e jovens trabalhadores de todas as cores que se radicalizaram no ativismo através da ideia do socialismo com alternativa ao capitalismo. Contribuiu para dar um sentido ao socialismo para toda uma geração.

Por outro lado, aprisionou o projeto de luta pelo socialismo no seio do Partido Democrata. Ora este partido é capitalista, não é um partido social-democrata ou um partido dos trabalhadores. É estritamente controlado por doadores ricos, a burocracia do partido e os seus políticos burgueses.

A participação de Sanders neste partido teve dois impactos negativos. Em primeiro lugar, desvio a energia da construção de um novo partido para o impasse da tentativa de assumir o controlo dos democratas. Em segundo lugar, tentando obter votos neste partido, Sanders redefiniu o socialismo como o liberalismo do New Deal de Franklin Delano Roosevelt.

O DSA assumiu-se como o principal beneficiário à esquerda das campanhas de Sanders. Passaram de uma organização moribunda de um reformismo a envelhecer ligado ao Partido Democrata para uma nova organização jovem de 70.000 socialistas, inspirada pelas lutas a partir de baixo e atraída pela versão do socialismo de Sanders e a sua proposta de reforma social como o Medicare for All.

Tragicamente e de maneira previsível, todavia, o Partido Democrata bloqueou as duas tentativas de Sanders de ganhar a nomeação presidencial. Em 2016, o aparelho democrata juntou-se a Clinton e depois fez o mesmo com Biden.

De facto, Sanders teve um resultado pior em 2020 do que em 2016, provando que os democratas toleram alegremente os esquerdistas no seu seio para os impedir de construir um novo partido socialista mas bloqueiam qualquer sua tentativa de tomar conta do partido.

Depois da sua derrota, Sanders manteve a sua promessa de apoiar o candidato democrata e juntou os seus apoiantes no apoio a Biden. Pior ainda, ele fez um lifting a Biden, prevendo que tinha o potencial para se tornar o presidente mais progressista a seguir a Franklin Delano Roosevelt. Qualquer leitura, ainda que superficial, do que Biden e os seus administradores dizem aos seus apoiantes de, se escarnece desta afirmação.

Como consequência disto, Sanders desorganizou largamente o seu movimento e tentou reorientá-lo, tal como as suas organizações, para apoiar Biden, na melhor das perspetivas enquanto progressista, na pior enquanto o mal menor para destronar Trump. O DSA foi desafiado nesta nova situação para reorientar a organização.

Enquanto as secções e membros do DSA estiveram ativos nas vagas de luta, a campanha de Sanders e campanhas eleitorais similares no seio do Partido Democrata ocuparam um lugar central para a organização. Com a derrota de Sanders, o DSA continuou a ter alguma vitórias eleitorais, em particular em Nova Iorque, mas perdeu a sua orientação. A fixação nos prazos eleitorais levou as organizações no seio do DSA a desviar-se dos seus objetivos principais e das novas vagas de luta. Por exemplo, enquanto os seus membros se juntaram às manifestações Black Lives Matter, o DSA como organização nacional e a maior parte das suas secções não desempenharam um papel de primeiro plano no movimento.

JD: Como a esquerda dos EUA se posiciona nestas presidenciais?

 

A eleição presidencial de novembro não é o que a esquerda e o DSA esperavam. Muitos, erradamente, esperavam que fosse Sanders que ganhasse a nomeação democrata. A partir daí, o DSA e a esquerda enfrentam uma armadilha pouco atraente e clássica de uma eleição entre um republicano de direita, Trump, e um democrata do sistema, Biden, que procurou restaurar as normas burguesas por intermédio de um governo de unidade nacional.

Face a esta “escolha”, a esquerda divide-se em três correntes principais. Em primeiro lugar, a esquerda liberal é completamente a favor de Biden com diversos graus de ilusão no seu programa. Alguns enganam-se pensando que ele será tão progressista como anuncia Sanders, enquanto que outros votam mais sobriamente por ele sabendo perfeitamente que se trata de um capitalista neoliberal mas pensando que é o único meio de fazer Trump sair do lugar.

Na esquerda socialista, a corrente principal é a que aceita a posição tradicional do mal menor. O melhor desta corrente é quem promete fazer campanha e votar em Biden e depois combatê-lo desde o primeiro dia. Outro alimentam a ilusão que ter Biden na Casa Branca facilitará a obtenção de reformas progressistas.

Uma pequena corrente de socialistas revolucionários, dos quais eu faço parte, pronuncia-se contra estas duas posições. Defendemos que não se pode combater o mal maior votando no mal menor por três razões. Primeiro, a partir do momento em que a esquerda aceite a escolha e se alinhe com o mal menor, somos dados como certos e as nossas exigências ignoradas.

Segundo, se e quando o mal menor ganhar, a esquerda que apoiou este mal será tentada a cooperar com ele no poder, alguns indo até ao ponto de se juntar à administração e outros que ficam no exterior oferecendo-lhe um “estado de graça” e esperando que faça algumas reformas. Isto deixa a extrema-direita como a única oposição.

Neste caso, a esquerda será tentada a defender o governo, selando a cooptação e a neutralização da esquerda. Ao mesmo tempo, o mal menor no poder concluirá acordos com o mal maior. Biden fez a sua carreira fazendo este tipo de acordos podres.

Terceiro, fazer campanha pelo mal menor não é uma decisão individual mas coletiva de consequências enormes. Se a escolha apoiar Biden, isto ajudará e encorajará as burocracias que controlam os sindicatos, as organizações do movimento social e as ONG a desviará o tempo, o dinheiro e a energia dos militantes da construção da luta para combater o que queremos e fazer votar o que não queremos – um mal menor neoliberal.

O DSA enquanto organização principal da esquerda está dividido entre estas correntes. Está interditado enquanto organização de apoiar Biden pela resolução “Bernie or Bust” que adotou na sua última convenção. Mas os membros de alguns destes caucus fizeram ativamente campanha por Biden e muitos, senão a maior parte dos seus dirigentes e membros votarão individualmente por Biden, mesmo desconfiando dele ou desprezando-o.

 

JD: Qual é a sua reação ao [primeiro]debate entre Donald Trump et Joe Biden?

 

Não foi um debate. Foi um espetáculo que simbolizava a degenerescência da classe política que “dirige” o capitalismo dos Estados Unidos. Trump foi inteiramente responsável pelo fiasco. Queria um combate de luta profissional e conseguiu. Vendo que perdia, optou por uma estratégia de cão raivoso contra Biden para o fazer sair da sua estratégia interrompendo-o com insultos pessoais, mentiras e distorções e apelos grosseiros à base da área direita do Partido Republicano.

Duas entre o conjunto de diatribes de Trump foram muito importante para nós ao nível da esquerda. Primeiro, apelou aos “observadores do escrutínio” para assediar as pessoas na cabine de voto. Segundo, não apenas recusou condenar os supremacistas brancos, apoiando-os e apelando aos Proud Boys a “recuar e manter-se em prontidão”, o que o grupo adotou agora como divisa. Trump continuou desta forma a dar luz verde ao crescimento dos “justiceiros” de extrema-direita e das milícias fascistas.

Biden, por seu turno, tentou posicionar-se como chefe de Estado competente, capaz de gerir as múltiplas crise que eclodiram durante a má gestão de Trump, da pandemia à recessão, ao levantamento contra o racismo policial ao desastre climático. Mas, e isto escapará às pessoas aterrorizadas por Trump, Biden virou à direita, procurando atrair a classe média e os eleitores centristas hesitantes. Rejeitou abertamente o Green New Deal, o Medicare for All e a redução de financiamento da polícia, demonstrando a ilusão de todas as afirmações feitas por aqueles, como Sanders, que diziam que Biden tinha potencial para ser o presidente mais progressista da história recente.

Biden é o que é – um defensor do capitalismo neoliberal e um opositor declarado do socialismo. Longe de ser um travão à direita, Biden e as suas políticas criaram as condições que levaram à ascensão do trumpismo e da direita – uma desigualdade de classe massiva, um Estado Social devastado, uma infraestrutura em decomposição, uma opressão institucional intensificada e toda a frustração política, a cólera e o desespero que se agravam nestas condições. Trump e a direita oferecem soluções reacionárias a estes verdadeiros problemas da vida das pessoas.

A eleição de Biden não travará assim a ascensão da direita porque manterá estas condições. E Trump, se perdier, não sairá da cena da história, mas unirá a direita através da afirmação que um “regime socialista” roubou as eleições, criando um movimento de estilo Tea Party, ainda mais à direita e com elementos fascistas armados no seu seio. E se Trump conseguir ganhar, seja através de uma vitória no colégio eleitoral, seja roubando as eleições através de contestações judiciais nos tribunais que seriam ratificadas num Supremo Tribunal manipulado, dirigirá uma direita ainda mais encorajada contra a esquerda, os sindicatos e as pessoa oprimidas que não terão outra escolha que não lutar pela vida.

Dito isto, Biden ganhou o debate não fazendo sequer nada mas apenas ultrapassando a barragem de ataques de Trump e não se apagando. Trump muito provavelmente desperdiçou a sua possibilidade de inverter a dinâmica da eleição e, pelo contrário, tornou a sua derrota ainda mais provável. Não fez nada para convencer os eleitores centristas hesitantes que tendem cada vez mais para Biden.

Mas, e toda a gente à esquerda deveria ser clara sobre isto, Trump é um perigo para os direitos democráticos. Apelou abertamente aos militantes da direita para assediarem os eleitores, ameaçou a integridade da eleição rejeitando os boletins de voto por correspondência e revelou que a sua nomeação de Barrett para o Supremo era totalmente concebida para garantir uma vitória no caso das eleições serem legalmente contestadas.

Seja qual for a posição sobre em quem votar, a esquerda deve unir as mais amplas forças possíveis para exigir que os democratas bloqueiem a nomeação de Barrett, preparem ações de massa para a defesa do direito de voto e manifestações de massa e greves no caso de Trump tomar as eleições reféns utilizando o Supremo Tribunal como fez Bush Jr. em 2000. Biden e os democratas não resistirão certamente a Trump sem uma pressão massiva a partir de baixo.

Tal como Gore em 2000, estarão predispostos a acietar a derrota porque fazem parte da mobília da democracia burguesa americana com todas as suas instituições reacionárias, do sistema bipartidário ao Colégio eleitoral e ao Supremo Tribunal. Ninguém nos salvará, apenas devemos contar connosco próprios. É tempo de nos unirmos e de lutar pela defesa dos nossos direitos democráticos.

Por fim, no meio desta luta, a esquerda deve começar a falar seriamente na construção de um novo partido socialista como alternativa para travar as lutas nas comunidades, nos locais de trabalho e nas urnas. Seja qual for o resultado das eleições, devemos bater-nos pelo que queremos através de uma luta de massas e devemos combater a direita com manifestações de massa para proteger o que resta da democracia neste país.

 

JD: Que futuro para o DSA e mais geralmente para a esquerda nos EUA?

Estamos no meio de uma crise profunda do sistema capitalista com múltiplas características interligadas – um marasmo mundial prolongado, uma pandemia em curso, as alterações climáticas e a intensificação da rivalidade inter-imperial entre os Estados Unidos e a China. É a crise sistémica mais grave desde os anos 1930.

Nos Estados Unidos, há uma profunda polarização política para a esquerda sob a forma do DSA e do novo movimento socialista e para a direita sob a forma de Trump no topo do Partido Republicano e das fileiras crescentes das milícias de extrema-direita e fascistas organizadas. O establishment capitalista está cada vez mais orientado para o Partido Democrata na esperança desesperada de estabilizar o que parece ser um Estado e uma economia em falência.

Nas condições de profunda recessão e de pandemia, os trabalhadores e os oprimidos são levados a bater-se pela sua vida, do levantamento multi-racial dirigido pelos negros contra a brutalidade policial às greves. A esquerda emergente dever-se-á fundir numa força, eventualmente um novo partido socialista que pode ajudar a travar estas lutas a partir de baixo e fornecer uma alternativa para desafiar ao mesmo tempo o establishment capitalista do Partido Democrata assim como o Partido Republicano e a extrema-direita.

O DSA é o melhor colocado para lançar o esforço de criação de um novo partido. Mas as suas inúmeras correntes não estão unidas na defesa deste projeto: alguns continuam envolvidos no projeto de Sanders de ganhar o Partido Democrata; muitos esperam utilizar a linha de escrutínio do Partido Democrata para constituir uma força de políticos eleitos com vista a lançar um novo partido no futuro; e a maior parte estão orientados numa via eleitoral para a formação deste novo partido.

A questão será saber se a esquerda revolucionária no interior e nas franjas do DSA pode lutar por uma estratégia diferente, centrada na luta de classe e na luta social e no trabalho eleitoral local independente dos dois partidos capitalistas, com o objetivo de lançar um novo partido socialista assim que seja possível. Toda a gente no interior da esquerda e no DSA debate estas ideias atualmente na perspetiva das eleições.

No caso improvável ainda que possível de uma vitória de Trump, estamos estaremos comprometidos no combate das nossas vidas contra uma direita ainda mais ousada. No caso mais provável de uma vitória de Biden, devermos fazer com que o DSA se comprometa numa luta com duas frente – um eixo será forçar a administração Biden a dar-nos o que queremos e a outra contra uma direita muito mais radical, militarizada e perigosa do que era o Tea Party no tempo de Obama.

Se Biden ganhar, o maior perigo é que lhe seja oferecido um “estado de graça” pela esquerda, abrindo a porta à direita para passar à ofensiva e fixar as condições da luta na política, na rua e nos locais de trabalho. Estamos no meio de uma crise profunda de proporções históricas, plena de perigos e de enormes oportunidades para a esquerda. O nosso futuro está em jogo.

 

Ashley Smith é membro do Democratas Socialistas da América em Vermont. Escreve para várias revistas como a Truthout, Jacobin, New Politics, Harpers, Spectre e Tempest.


Entrevista de Joseph Daher publicada na revista Contretemps. Tradução de Carlos Carujo para o esquerda.net.

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