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Até no melhor pano alemão cai a nódoa

A Wirecard beneficiou de apoios políticos de peso e recrutou ex-ministros e gente influente nos círculos do poder de modo a beneficiar das suas ligações.

A Alemanha consome-se no maior escândalo financeiro desde a Segunda Guerra. A lenda da boa regulação do sistema financeiro, que já deixou para trás um cemitério de vítimas há uma década, voltou a colapsar, mesmo onde se anunciava que seria mais rigorosa. Devemos aprender alguma coisa com isto, e não é bonito de se ver.

Uma estrela no firmamento

Quando, em 2018, a Wirecard, uma empresa financeira que processa pagamentos eletrónicos e que ascendeu fulgurantemente no mundo de negócios da Alemanha, entrou no Dax, o índice de referência da sua bolsa, foi festejado como um sucesso. Substituiu nesse índice o Commerzbank, o segundo maior banco do país, e até anunciou estar a cogitar comprar o Deutsche Bank, um dos maiores bancos europeus. Em pouco tempo, tornou-se um gigante. Dois anos depois, com um prejuízo avassalador e €2 mil milhões desaparecidos das contas, com quatro administradores sob custódia judicial, incluindo o CEO, com um dos dirigentes fugido à polícia, a Wirecard é o símbolo da fraude.

Não tinham faltado avisos. Jornalistas do “Financial Times”, que conta a história com detalhe, tinham publicado há dois anos as suas suspeitas, depois de investigações cuidadosas. A empresa mobilizou-se e a justiça de Munique ameaçou os jornalistas. Diz agora um alto funcionário alemão ao jornal que “o nível de criminalidade na Wirecard excedeu, de longe, o poder da minha imaginação”. A consultora que certificava as contas, a Ernst & Young, e o próprio Deutsche Bank, que foi parceiro de algumas das operações mais importantes da agência financeira, estão também sob pressão.

As ligações políticas

Como em muitos outros casos, e isto repete-se sempre como um relógio de cuco, a Wirecard beneficiou de apoios políticos de peso e recrutou ex-ministros e gente influente nos círculos do poder de modo a beneficiar das suas ligações. Essas conexões atingem tanto Merkel quanto Scholz, o ministro das Finanças que será o candidato social-democrata nas eleições de 2021, e por isso o inquérito parlamentar que vai estudar este caso tem contornos difíceis de calculismo partidário.

Scholz supervisiona a BaFin, a agência pública que regula o mercado financeiro, mas também a Unidade de Inteligência Financeira, que investiga o branqueamento de capitais e que se sabe agora que elaborou vários relatórios sobre atividades suspeitas da Wirecard, que podem ter sido dezenas, mas nunca os transmitiu ao Ministério Público. Assim, os seus parceiros de direita no Governo acusam o social-democrata de negligência. O problema é que a própria chanceler Merkel está numa situação comprometedora: em setembro do ano passado recebeu um ex-ministro da defesa, Karl-Theodor zu Guttenberg, que tem a Wirecard como cliente e que lhe veio pedir que intercedesse junto das autoridades chinesas para permitirem a compra de uma empresa de pagamentos, a AllScore Financial. Na sua viagem a Pequim, dias depois, a chanceler colocou o problema ao Governo chinês. A empresa foi comprada em novembro por €109 milhões. A Wirecard entrou agora em falência.

Empresas que são agências financeiras

Há um padrão nestes meteoros empresariais, que captam investimentos vultuosos prometendo sucesso e que são alimentados pela crendice na magia financeira. Outro exemplo alemão que demonstra como se procede para enganar o mercado, os investidores e o público, é o da Hertz, que pediu insolvência em maio deste ano, com €19 mil milhões de dívidas. A agência de aluguer de carros transformou-se, ao longo dos anos, num banco sombra, criando uma cascata de empresas, chamadas “veículos especiais” (o nome não é uma alusão ao aluguer de automóveis), algumas refugiadas em paraísos fiscais, que recolhiam aplicações financeiras a quem prometiam grande rentabilidade, emprestavam a outra empresa do grupo e esta, eventualmente, a outra, chegando depois ao negócio dos automóveis.

O fluxo de pagamentos dos alugueres deveria alimentar estes canais, que absorviam os lucros das operações sob a forma de juros e com vantagens fiscais. O esquema funciona enquanto cresce. Se para, desmorona-se. Foi o que aconteceu com a Hertz e a Wirecard. E todos tinham a obrigação de saber que assim seria.

Artigo publicado no jornal Expresso de 17 de outubro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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