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As escolhas da direita

O que seria da Escola Pública se as disciplinas passassem a ser opcionais em função das vontades e humores mais diversos?

O país enfrenta uma pandemia, deu um trambolhão monumental do Produto Interno Bruto, vislumbra já a ponta do icebergue de uma profunda crise social. Nesta tempestade perfeita, o que juntaria 100 personalidades da direita portuguesa? Nada mais nada menos que a indignação contra a existência de uma disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no currículo escolar.

O desemprego disparou, as empresas estão receosas, o Santuário de Fátima vai para a linha da frente da corrida aos despedimentos, os trabalhadores independentes veem a vida a andar para trás. Contudo, o que tira o sono a esta direita é a Cidadania ser obrigatória e a Igualdade de Género ser fundamentada.

O país descobriu que o Novo Banco manteve os velhos vícios vivendo à custa de dinheiros públicos, constatou a vergonha da conivência entre reguladores, auditados e auditores, irrita-se com o novo Governador do Banco de Portugal que esconde a auditoria que antes queria divulgar. Mas a Literacia Financeira e Educação para o Consumo é que apoquenta esta elite.

O primeiro-ministro ameaçou com crises políticas, fez ultimatos para criar ansiedades, levou um banho de água fria presidencial, deu o dito por não dito em poucos dias e ainda não apresentou nada visível para o Orçamento de Estado para 2020. Mas, a instabilidade política não chega nem perto da intranquilidade que o estudo sobre Direitos Humanos leva a estas personalidades de direita.

Parece quase uma anedota que a direita se resuma a estes assomos inexplicáveis à larguíssima maioria das pessoas. Confesso que não esperava, neste momento do país e do mundo, que um ex-Presidente da República e um ex-primeiro-ministro fizessem parte de tal desnorte. Já sei o que está a pensar, “é o que temos”, mas esse pensamento resignado mostra como pouco há a esperar de quem não tem um projeto político para apresentar ao país.

Sobre o tema em concreto, engana-se quem o discute como um “doutrinamento” ou uma questão de “liberdades”. Esse é um debate que se esgota rapidamente na análise a este caso, como já foi afirmado nas páginas deste jornal, dado que a cidadania não é facultativa. Uma disciplina que versa temas como Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Instituições e Participação Democrática, Segurança Rodoviária, etc., não é a raiz dos problemas na sociedade, certamente. Imagino, pelo contrário, que esta disciplina fazia falta a muita gente.

A questão de fundo é se aquelas crianças devem ser reféns da teimosia desmiolada dos pais. É claro que não! Pobres as crianças que não têm nos pais quem lhes possa enquadrar o que veem e ouvem na escola ou no mundo e preferem tapar-lhes os olhos ou os ouvidos, que acham que o conhecimento pode ser desviante. E o que seria da Escola Pública se as disciplinas passassem a ser opcionais em função das vontades e humores mais diversos? - o que eu detestava as aulas de desenho… É para haver igualdade que existe um currículo nacional.

O tema já tinha despontado em julho, quando foi lançado nos escaparates pela imprensa de direita. No entanto, mal se soube que o pai das crianças tinha recusado as tentativas da escola para resolver o problema e demonstrado uma completa intransigência, este assunto perdeu força. Ficava demonstrado como o bom senso era coisa que não imperava na mente parental. Mas, há coisas assim, a silly season nem sempre se cinge a agosto e entramos em setembro com a segunda temporada desta série de fraca qualidade. A novidade é que agora vem a reboque de uma posição pública de figuras de destaque político.

A direita portuguesa está num caminho de radicalização, este é apenas mais um exemplo. Já assistimos a esta realidade noutras partes da Europa, onde as vitórias da extrema-direita começam bem antes de irem a votos. Desviam os debates do que é essencial para as clivagens artificiais, conquistam para o radicalismo mesmo aqueles que se julgavam moderados, e colocam em causa o respeito pela comunidade nacional, dividindo e afastando. Tontos são aqueles que julgam ter resultados diferentes copiando os mesmos erros. A ingenuidade não é desculpa em política, nem podem dizer que não sabiam ao que iam.


Artigo publicado no Público, 4 setembro 2020.

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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