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Por uma grande transformação na proteção social

A situação que temos continua a ser absolutamente insustentável. A maior parte dos trabalhadores desempregados não tem proteção.

É um facto que a crise mostrou as lacunas profundas do nosso sistema de proteção social. Houve centenas de milhares de pessoas em Portugal que, tendo perdido o seu emprego, ficaram sem acesso a qualquer proteção social. Parra isso contribuem formas precárias de emprego que não permitem aceder às prestações de desemprego, designadamente por inexistência do prazo de garantia exigido. Mas contribui também o enorme volume de trabalho informal (sem proteção social), a debilidade da proteção dos trabalhadores independentes e o facto de os subsídios de desemprego terem, desde 2010, sofrido alterações na sua cobertura e valor.

Esta realidade obrigou a que se criassem, em 2020, três tipos de medidas temporárias. Novas prestações sociais, limitadas no tempo, a maioria das quais com uma duração de seis meses, como o “apoio extraordinário para os trabalhadores independentes” e a medida destinada aos informais, que o Governo se comprometeu que funcionaria a partir de julho mas que ainda não foi concretizada (o Governo hoje veio anunciar que seria em setembro…). Novas regras, também temporárias, para acesso às prestações existentes, como a diminuição do prazo de garantia do subsídio de desemprego e do subsídio social. E a prorrogação da sua atribuição (nalguns casos, apenas para quem tenha perdido o emprego durante o período de emergência ou calamidade).

Mas a situação que temos continua a ser absolutamente insustentável. A maior parte dos trabalhadores desempregados não tem proteção. No passado mês de julho, só 221.701 desempregados, de um total de 636.200, recebia uma prestação de desemprego (ou seja, cerca de 35%). E se é certo que o número de pessoas com subsídio de desemprego aumentou bastante, já a cobertura do subsídio social de desemprego é absolutamente risível: 10.894 pessoas, menos de 2% do número total de desempregados. Por outro lado, continuamos a ter prestações de desemprego abaixo do limiar de pobreza (502€ mensais, de acordo com os últimos dados disponíveis). O valor mínimo do subsídio de desemprego, que as pessoas pagaram com as suas contribuições, é de cerca de 80€ abaixo do limiar de pobreza. O valor mínimo do subsídio social de desemprego (não contributivo) é de 346,61€ (80% do IAS), muito abaixo do limiar de pobreza.

Não admira, por isso, que os desempregados sejam o grupo mais exposto à pobreza em Portugal e o único que diverge da tendência nacional de redução do risco de pobreza nas últimas décadas. Como é revelado no último capítulo deste estudo, entre 2005 e 2018, a taxa de risco de pobreza dos desempregados teve um aumento de cinquenta por cento (de 28% para 42%). Ou seja, o problema já vinha de trás. Com efeito, há cerca de uma década, o Governo PS de então (2010) fez alterações estruturais com um enorme impacto no subsídio de desemprego: o cálculo do valor mínimo e máximo deixou de ter como referência o Salário Mínimo Nacional, além de se terem alterado os períodos de concessão. A Direita, a partir de 2012, acentuou este caminho. A consequência foi uma redução do tempo de proteção para os trabalhadores, particularmente aqueles com menores carreiras contributivas. O mesmo aconteceu com o subsídio social de desemprego, cujo acesso foi dificultado por uma condição de recursos que exclui a maioria.

Ainda hoje, mantém-se neste campo o triplo recuo ocorrido no tempo da troika: corte no valor da prestação, na duração do período de concessão e na condição de recursos do subsídio social. Nenhuma destas medidas foi revertida. O único corte que foi eliminado na anterior legislatura neste campo foi o de 10% no valor da prestação ao fim de 180, além de se ter posto fim às humilhantes e inúteis “apresentações quinzenais”.

À debilidade do subsídio de desemprego soma-se uma degradação das prestações de combate à pobreza. O Rendimento Social de Inserção tem acolhido muito poucas vítimas desta crise: aumentou apenas 1,3% o seu universo de beneficiários nos últimos 12 meses. Os desempregados e os jovens adultos, o grupo social mais vulnerável à pobreza em Portugal, não tem no RSI uma medida capaz de lhes responder. O mesmo acontece com os trabalhadores informais, que não cabem na condição de recursos. Além disso, os valores do RSI ficam muito aquém do limiar da pobreza: em julho deste ano, a prestação média de RSI foi de 119,96 euros por beneficiário, por mês. Desde 2010, as alterações restritivas nas condições de acesso e na definição dos agregados familiares ditaram uma degradação da prestação. Os elementos diferenciadores da medida, assentes num compromisso do Estado com um plano de inclusão para cada pessoa, desvaneceram. O estigma social lançado sobre a medida fez o resto.

Por fim, os trabalhadores independentes são praticamente excluídos de proteção social quando ficam sem atividade. Neste mês, eram menos de 400 os trabalhadores independentes com acesso ao subsídio por cessação de atividade (uma espécie de “subsídio de desemprego” para os trabalhadores a recibo verde), um número absolutamente ridículo quando comparado com um universo de centenas de milhares de trabalhadores. A dimensão do problema ficou clara quando mais de 200 mil trabalhadores requereram o apoio extraordinário para trabalhadores independentes durante a pandemia. Este apoio, que foi importante, teve, contudo, valores muito baixos (em média, 227,31€ por mês) e houve milhares que foram excluídos por critérios mais que discutíveis.

Em suma: temos em Portugal um problema grave de proteção social. Ele não se resolve apenas com mais uma medida temporária, agora que os apoios extraordinários estão a acabar. Precisa de alterações de fundo na regulação e na proteção do trabalho e no desenho das prestações de desemprego.

Ninguém sem emprego ou sem atividade e que não tenha rendimentos deve ficar desprotegido. Nenhuma pessoa que trabalhou e descontou deve ter um apoio abaixo do limiar de pobreza. Se aceitarmos estes princípios, então temos um trabalho estrutural pela frente, que não é apenas mais um remendo de alguns meses. É preciso alterações profundas no RSI, é preciso mexer nas prestações de desemprego, revertendo os cortes no valor e na duração. É preciso mudar o subsídio social de desemprego, alterando regras de acesso e limiares mínimos. E é preciso, sim, criar novos patamares de proteção social, que cubram todos os casos que não estão abrangidos pelas prestações de desemprego e pelo RSI, o que implica, provavelmente, uma prestação social nova, de largo espectro, permanente, e com um fôlego diferente das que existem.

É uma tarefa imensa. Mas sem ela, a ideia de “não deixar ninguém para trás” não será mais que um slogan.


Artigo publicado no site do Expresso, 28 agosto 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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