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Advocacia: Pagar para trabalhar

Não se pode continuar a ignorar a factualidade da advocacia ser uma profissão só para alguns e algumas. É urgente a solidariedade entre colegas para que se comece a alterar, não só o paradigma do estágios, como de outras questões gritantes da Ordem dos Advogados.

Terminada a licenciatura de 4 anos em Direito, os e as recém licenciadas cuja ambição laboral passe pela advocacia terão de se inscrever na Ordem dos Advogados.

Para a inscrição na Ordem, não basta o diploma de licenciatura, é impreterível que os e as recém licenciadas estejam na disponibilidade de despender de 700€1.

Note-se que, estes 700 € garantem apenas a inscrição como Advogado Estagiário, durante a primeira fase.

Esta primeira fase tem a duração de seis meses. Seis meses em que os Advogados Estagiários estão obrigados a assistirem a sessões de formação, sobre matérias lecionadas na licenciatura, como Processo Civil ou Processo Penal. A única novidade destas sessões, prende-se com a ministração da formação em Deontologia, relevante para o íntegro exercício da profissão. Relativamente às sessões de formação das disciplinas anteriores, as mesmas, são, na sua grande maioria uma revisão do que foi lecionado na faculdade, não contribuindo em muito para o exercício da prática. Inversamente retiram tempo crucial para conhecer e dominar a práxis em contexto de escritório e tribunal.

Nos cinco dias antes do término desta 1ª fase, o Advogado Estagiário tem de ter a disponibilidade de despender de mais 300€2, que garantem apenas a sua inscrição como Advogado Estagiário, durante a segunda fase do estágio.

Durante a segunda fase de estágio, os estagiários praticam atos próprios da advocacia: Assistências, Intervenções em Audiência de Julgamento, elaboração de Peças Processuais, entre outros. Assumem a responsabilidade própria da profissão.

Chegados ao fim desta extensa e árdua fase, o Advogado Estagiário tem de voltar a ter a disponibilidade de despender de mais 500€3, caso contrário não poderá realizar a prova escrita que integra a prova de agregação.

No fim, o curso de estágio tem um custo total de 1500 €, ao qual se deve somar o valor do seguro, despesas de transportes e alimentação que, também são suportadas pelo estagiário.

Assim, e para ter um primeiro contacto com a profissão só precisa de ter disponibilidade financeira. O diploma de licenciatura, o mérito profissional e académico, ficam para segundo plano. Portanto, facilmente se depreenderá que o acesso à profissão está envolto de uma grande malha elitista, desconsiderando por completo a igualdade de oportunidades na escolha de profissão (artigo 58º, nº1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa).

Durante o curso de estágio, o advogado estagiário é supervisionado pelo Patrono, o principal responsável pela orientação e direção do exercício profissional do estagiário4

O Patrono, está adstrito a um conjunto de obrigações previstas no artigo 16º do Regulamento Nacional de Estágio, de ressalvar a alínea d) que obriga o patrono a compensar o estagiário das despesas por este efetuadas nos processos em que atuem conjuntamente, ou que tenham sido confiados pelo Patrono e, alínea l) que estipula que o patrono não pode aceitar mais do que dois estagiários em simultâneo.

Sucede, que, na prática o que se vislumbra é diferente. Raros são os escritórios que compensam os estagiários pelas despesas que estes possam ter com o exercício da profissão. Alguns são os patronos que aceitam mais de dois estagiários, em algumas situações acontece que o Patrono para efeitos da OA, não corresponde ao Patrono da vida prática, o que se materializará na má supervisão do estágio.

Tudo isto, permite-se pela ausência de fiscalização durante o curso de estágio. Os estagiários, ficam assim entregues à sua sorte e à disponibilidade dos Patronos. Na hipótese de algo correr mal e, o estagiário se vir obrigado a trocar de Patrono, terá, mais uma vez de ter a disponibilidade financeira de pagar uma taxa no valor de 50€, só assim se efetiva a mudança.

Neste seguimento, facilmente se percebe o quão instável e contingente será a vida de um advogado estagiário durante 18 meses.

O atual bastonário, antes de ser eleito, numa entrevista dada ao Vozes ao Minuto5, lamentou o facto de os estágios não serem remunerados e, avançou com uma eventual solução que se concretiza na criação de bolsas de institutos púbicos, como o IEFP.

Bom, talvez fosse mais célere e eficaz começar por estipular a obrigatoriedade de uma remuneração justa e adequada dos estágios por parte dos escritórios e sociedades de advogados através de mecanismos internos. Veja-se que, até à data os advogados com inscrição ativa na Ordem, descontam para a Caixa de Providência dos Advogados e Solicitadores que, será tudo menos um instituto público6. Assim, e tendo por base a urgência da remuneração dos estágios, a criação de um mecanismo interno de remuneração não poderá ser entendido como algo novo e surpreendente para a OA, mas sim iminente.

Num debate entre os candidatos e a candidata a bastonários, que aconteceu em Coimbra antes das eleições, a qualidade dos estágios dominou a discussão7. Espera-se, que o tema não caia no esquecimento, não só do atual Bastonário como de toda a classe.

Afinal, os advogados estagiários são parte integrante da classe. Logo, dignificar, reconhecer e ressarci-los pelo seu trabalho, será sinónimo de dignificar toda a classe.

Não se pode continuar a ignorar a factualidade da advocacia ser uma profissão só para alguns e algumas. É urgente a solidariedade entre colegas para que se comece a alterar, não só o paradigma do estágios, como de outras questões gritantes da Ordem dos Advogados.

Artigo publicado em Interior do Avesso, a 30 de julho de 2020

Notas:

1 (Deliberação n.º 1142/2018, 8.1).

2 (Deliberação n.º 1142/2018, 8.2)

3 (Deliberação n.º 1142/2018, 8.3)

4 (artigo 15º Regulamento Nacional de Estágio)

6 Artigo 1º DL n.º 119/2015

Sobre o/a autor(a)

Advogada estagiária, mestranda em Criminologia e militante do Bloco de Esquerda em Lamego.
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