You are here

Sim, é racismo

Bruno Candé foi chamado de estranho na sua terra, mandado embora de um país que era o seu, morto por quem achava que ele estava a mais em Portugal. Negar a dimensão racista deste crime hediondo é persistir em parte do problema que lhe deu origem.

Bruno Candé foi assassinado por um racista. Estava sentado num banco, na principal avenida de Moscavide, quando o assassino se abeirou dele e disparou. Quatro vezes. 39 anos que terminaram em segundos, três filhos pequenos que ficaram sem pai. O racismo mata em Portugal.

Relatos de testemunhas dão conta de um desentendimento nos dias anteriores. O assassino terá tropeçado na cadela que acompanhava Bruno Candé. Seguiram-se insultos racistas, o habitual “vai para a tua terra” ou a ameaça radicada no passado colonial: “Tenho armas do ultramar em casa e vou-te matar.”

Quem procura esconder o racismo que existe no nosso país dirá que tudo começou naquele momento, que uma coisa leva à outra e depois tudo se descontrolou. Ficará convencido disso quem disso se quiser convencer, pois a realidade mostra tudo de forma bem diferente.

Morreu Bruno Candé, mas não o seu exemplo. Juntemos forças, então, para vencer o racismo que mata

O crime foi premeditado, o assassino regressou dias depois do desentendimento com o único objetivo: matar Bruno Candé. Para isso usou uma arma ilegal, cujo percurso ainda está por explicar. Os insultos racistas dão conta de um ódio que já era antigo, que vinha de trás, e do qual Bruno Candé não podia fugir: a cor da sua pele. Isso incomodava o assassino muito antes da cadela se ter atravessado ao caminho e é o que torna tudo diferente.

Bruno Candé não nasceu destinado a ser ator. Esse não era o futuro que as estrelas reservavam a quem nascia num dos bairros mais estigmatizados de Lisboa, a Zona J de Chelas. Mostrou que nenhum futuro está escrito à nascença e fintou o destino que lhe reservavam. Alcançou o seu sonho enquanto outros também lutavam pelos seus. A artista Mónica Calle fixou a sua companhia na Zona J, sonhando a inclusão pela arte, e surgiu a derradeira oportunidade que Candé agarrou.

Bruno Candé não foi só ator, fez “o caminho” todo. Foi técnico, foi companheiro, foi criador. É o exemplo da humildade de quem se realiza na arte, que não a toma só por sua, que a vive como uma partilha. Por isso era tão querido entre os seus colegas e é lembrado como um ser humano excecional, “uma pessoa extremamente afável e sociável”, “alguém com uma alegria e generosidade singulares, uma pessoa com uma força e inteligência emocional incríveis que procurou sempre descobrir-se a si e aos outros”.

Há dois anos teve nova provação com um acidente. Regressava a casa de bicicleta e foi atropelado, deixado ao abandono no meio da estrada. Foi uma chamada anónima que alertou o INEM para o socorro necessário, tendo sido encontrado sozinho, inconsciente, no chão. Passou meses em coma e ainda hoje recuperava das lesões que lhe paralisaram o lado esquerdo. Encontrou na cadela que o acompanhava uma força imprescindível para a sua recuperação.

A fibra de Bruno Candé também se percebe pela sua persistência. Não desistiu perante o infortúnio, não baixou os braços após o acidente. Já tinha planos para um livro, continuava dedicado ao teatro, servia como inspiração para muitos e por isso granjeou ainda mais respeito. Mas nada disto era relevante para quem o assassinou.

Bruno Candé foi chamado de estranho na sua terra, mandado embora de um país que era o seu, morto por quem achava que ele estava a mais em Portugal. Negar a dimensão racista deste crime hediondo é persistir em parte do problema que lhe deu origem.

É possível mudar mentalidades e a estrutura social e ganhar a luta contra o racismo, é nisso que nos temos de focar e são essas mudanças que devemos exigir

A pergunta não deve ser se há racismo em Portugal. Este horrível assassinato demonstra-o, mas não é exemplo único. Negar a existência desse racismo é a militância de uma extrema direita racista, não pode ser o debate da generalidade da sociedade. O nosso foco deve ser em considerar que esse racismo não é nenhuma inevitabilidade, não é uma característica intrínseca do país, que pode e deve ser combatido e vencido. É possível mudar mentalidades e a estrutura social e ganhar a luta contra o racismo, é nisso que nos temos de focar e são essas mudanças que devemos exigir.

Morreu Bruno Candé, mas não o seu exemplo. Juntemos forças, então, para vencer o racismo que mata. Assim, poderemos dizer que o mataram, semearam-no.

Artigo publicado no jornal “Público” a 31 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
Termos relacionados Racismo mata
(...)