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Então, já há almoços grátis?

No final de uma cimeira com três dias de gritaria e um de Twitter, o resultado foi vendido como transcendente. Mas há vários riscos. Desde logo, quem paga a conta.

A cimeira europeia teve três dias de gritaria e um dia de Twitter, com cada governante a vender o resultado da barganha como se fosse um evento transcendente. É a normal luta pelo controlo da informação. Fora da sala, houve quem se consolasse com o fumo branco, houve mesmo quem garantisse que era um momento mágico, “hamiltoniano”, e que nasceu o Estado europeu, houve de tudo, mas no fim fica sempre a continha.

A conta vem antes do almoço

A conta foi feita por Lagarde: é menos de metade do que era necessário. E por Merkel e Macron: os 400 mil milhões de subsídios eram a linha vermelha, aceitaram a humilhação de a baixar. E por todos os governantes que anuíram a um orçamento reduzido, o que tinham jurado combater até à última bala. Ficou uma inovação, a emissão de dívida pela Comissão Europeia, a ser paga entre 2028 e 2058, só que não se sabe como. Até ver, é um empréstimo garantido pelo Estados, ou seja, vão pagar nos orçamentos por três décadas, a não ser que sejam aprovados novos recursos, precisamente os que têm sido persistentemente recusados, e ouvir agora promessas, aliás pouco enfáticas, de uma taxa sobre transações financeiras, já votada há nove anos e sempre bloquea­da, soa a banha da cobra. Talvez a taxa sobre o plástico seja aprovada em 2021, mas será pouco. Esse é o primeiro risco da decisão — não se sabe como vai ser paga a conta. Ou seja, o que para já se criou foi dívida adiada.

O segundo risco é uma certeza, as grandes reformas europeias vão ser reduzidas com o seu orçamento. O Green Deal ou a Europa digitalizada são secundarizados. A transição justa perde dois terços do orçamento, o Horizon, programa para cooperação científica, perde quase tanto. Uma parte dos seus objetivos poderá ser consagrada nos programas nacionais ao abrigo dos subsídios e empréstimos, mas é de notar que há uma diferença entre planos locais e uma colaboração europeia com orçamento.

A pior conta é a política

No Orçamento plurianual, Portugal sofre uma redução precisamente onde o primeiro-ministro prometera não se perder um cêntimo. São cortes de 7,5% na coesão (o Governo soma-lhe os novos fundos extraordinários para evitar esta conta) e de 9% na agricultura. Esses são cortes permanentes, que agravam reduções anteriores nos fundos de coesão. Argumenta o Governo que há que considerar agora os fundos extraordinários (9,6 mil milhões do Fundo de Recuperação Europeia e talvez mais 5,7 mil milhões dentro de dois anos), o que pode ter um impacto grande na economia, o que é certo. Mas as contas são mais complicadas: a Grécia, menos afetada pela pandemia que Portugal (tem quatro mil casos e 200 mortos), receberá €19 mil milhões de subsídios (13,3 dos quais em 2021 e 2022) e 12,5 de empréstimos — a distribuição é feita segundo critérios talhados à medida de cada fato.

Há então vários riscos pesados. Não se sabe como vai ser paga a dívida europeia, há desigualdades entre países, os dois grupos não merkelianos ganharam poder, o dos frugais e o de Visegrado, e, sobretudo, impuseram uma norma: o chamado travão de emergência, que pode ser o detonador de novas crises. Percebe-se a resistência de vários Governos, mas aceitaram uma solução comprometedora: um país pode reclamar da execução de programas noutros, criando-se uma forma de tutela pelo Conselho que politiza em conflito internacional o que deveria unir a União. Não sei se, na afobação dos twites autocongratulantes, os governantes se deram conta de que assim aprovaram uma cláusula que vai inventar novas tensões, sem escape possível.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 25 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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