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E agora, António Costa?

A discussão do “Estado da Nação”, que encerra o trabalho do Parlamento antes das férias, é um preâmbulo das escolhas que terão de fazer-se já a partir de setembro.

A sessão legislativa acabou com a medida simbólica que se conhece: o fim dos debates quinzenais (a que se somou a limitação do direito de petição), acordado “em conversas” entre António Costa e Rui Rio. O empobrecimento da capacidade de escrutínio do Parlamento partiu os próprios partidos proponentes, pelo sinal que dá, altamente negativo, de desapego ao debate e ao confronto democrático e à fiscalização do Governo. A discussão de hoje do “Estado da Nação”, que encerra o trabalho do Parlamento antes das férias, é um preâmbulo das escolhas que terão de fazer-se já a partir de setembro. Entre os fundos europeus e a preparação do próximo Orçamento, o tempo que se segue é de definição de respostas estratégicas para a fase seguinte. Dou dois exemplos de opções definidoras que estão em cima da mesa.

Equilíbrio no apoio à economia: empresas com lucros devem poder despedir?

Nos últimos meses, o Governo injetou milhões de euros na economia por via do apoio às empresas. É consensual a necessidade de ter medidas de proteção do emprego e de financiamento da economia em tempos de paragem. Mas o principal instrumento a que o Governo recorreu, e que agora quer prolongar – o lay-off –, tem sido altamente desequilibrado. Por quatro razões principais: i) o financiamento das empresas não teve como contrapartida a manutenção do emprego, no que aos trabalhadores precários diz respeito, protegendo apenas, e por um período limitado, os vínculos efetivos; ii) ele significa um corte de rendimento com óbvios efeitos sociais e económicos, porque a redução de 1/3 de salário penaliza os trabalhadores e conduz a um encolhimento da economia; iii) há uma gritante desigualdade no modo como a medida trata o trabalho e o capital: as empresas ficam dispensadas, por exemplo, de uma parte das contribuições à segurança social; já os trabalhadores, além de terem a redução de salário, mantêm integralmente a sua parte de contribuição; iv) a simplificação do lay-off deu azo a uma vaga de abusos laborais, que o Governo não preveniu no modo como desenhou a lei e que a inoperacionalidade da Autoridade para as Condições de Trabalho não trava, gerando-se um sentimento de impunidade generalizada.

Os sacrifícios imputados a quem trabalha contrastam com a ausência de contribuição exigida às empresas que acumularam lucros. Num contexto em que se mobilizam milhões de dinheiro público para o apoio às empresas e em que centenas de milhares de trabalhadores sofrem cortes salariais e desemprego, como não se exigiu ainda que as empresas com lucros estejam proibidas de despedir? É uma medida elementar de sensatez e de justiça.

Proteção social: a máxima de “não deixar ninguém para trás” é para levar a sério?

A pandemia revelou os efeitos da precarização das relações de trabalho, que o PS não quis inverter até agora. António Costa parece reconhecer o problema: “Esta crise pôs em evidência as fraturas profundas da nossa sociedade e o preço que pagamos pela excessiva desregulação de tudo aquilo a que nos habituamos a chamar de mercado de trabalho“. Foram declarações, no início deste mês, na Cimeira Global da Organização Internacional do Trabalho sobre o impacto da Covid-19 no mundo laboral. O primeiro-ministro foi mais longe, declarando que “deixar desprotegidos em tempos de prosperidade é deixar absolutamente sem proteção em tempos de crise”. Mas foi precisamente essa a escolha que o PS fez na anterior legislatura.

Garantir agora a proteção social implica combater a precariedade, fazer uma alteração estrutural à proteção no desemprego e ter uma proteção social que permita às pessoas sair da pobreza. Ora, as prestações de desemprego, que na última década foram reduzidas em valor e em duração, cobrem hoje apenas cerca metade dos desempregados. E nem os cortes de 2010 (quando o subsídio de desemprego deixou de ter como limiar mínimo o salário mínimo nacional) e de 2012 (a redução drástica na sua duração) foram eliminados.

É certo que houve apoios temporários criados no Orçamento Suplementar, a que o Governo resistiu, mas que o Parlamento acabou por aprovar. Mas estes apoios, além de temporários, têm um problema de fundo: nenhum deles tem sequer como referência o limiar de pobreza. O subsídio social de desemprego tem um valor que é 150 euros abaixo do limiar de pobreza. O novo apoio aos trabalhadores informais e às trabalhadoras do serviço doméstico está muito aquém do limiar de pobreza. E até as medidas que já vêm de trás, como o RSI e Complemento Solidário para Idosos, têm valores que não chegam ao limiar de pobreza. Vamos continuar com remendos temporários que condenam as pessoas apoiadas a permanecer na pobreza, ou estamos dispostos a fazer a transformação estrutural que se exige neste domínio?

Artigo publicado em expresso.pt a 24 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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