You are here
Ao Pingo Doce sabe bem pagar tão pouco
A ideia da "solidariedade" é errada, em primeiro lugar, porque a UE tem capacidade para financiar um ambicioso plano de recuperação através do BCE, sem exigir qualquer outra transferência entre países.
Em segundo lugar, porque o que os países europeus precisam é de instrumentos para lidar com a crise. A integração europeia eliminou e/ou centralizou esses poderes (como a emissão de moeda) e agora os "frugais" sequestraram-nos. Aos países que necessitem de financiamento, querem impor um programa liberal-autoritário, mesmo se essa não foi a escolha democrática dos seus povos. Uma espécie de servidão por dívida, já não à troika mas agora à Holanda (o que não parece desagradar a direita em Portugal, a julgar pela palavras de Rui Rio). Não deixa de ser irónico que o projeto europeu seja posto em xeque por governos da família socialista, mas esse sempre foi o prognóstico de quem, à esquerda, criticou a UE: uma Europa que, uma e outra vez, falha aos seus povos está condenada ao fracasso.
A ideia de um acordo europeu como ato de solidariedade é, finalmente, errada porque a "frugalidade" que tornaria os Países Baixos moralmente superiores é obtida à custa dos impostos que deveriam ser cobrados em outros países europeus. Todos os anos, o paraíso fiscal holandês cobra 10 mil milhões de impostos sobre os lucros que são desviados dos restantes países da UE. Um regime que nenhum país bloqueia, devido à livre circulação de capitais na UE, e que não é alterado porque os Países Baixos têm o poder de vetar legislação fiscal a nível europeu. Se considerarmos que a contribuição líquida dos Países Baixos para o orçamento europeu é de 4,9 mil milhões, o nosso parceiro "frugal" do centro da Europa é afinal financiado anualmente em 5 mil milhões de euros por estados como Portugal, que veem essa receita desaparecer das suas contas públicas.
Esta hipocrisia é a mesma que, ao longo dos tempos, serviu as maiores empresas portuguesas: ao mesmo tempo que exigiam em Portugal leis e regras à medida dos seus interesses, não hesitaram em registar as suas sociedades em Amsterdão. Entre elas estão todas as maiores da Bolsa portuguesa. Em período de crise, o que se pede a essas empresas não é solidariedade. É apenas decência: mudem as vossas sedes para Portugal e paguem cá os vossos impostos.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” de 21 de julho de 2020
Comments
Cara Deputada Mariana
Cara Deputada Mariana Mortágua, obrigada pelo seu trabalho nos vários processos que tem estudado, analisado e intervindo.
Parece-me que é única!
Add new comment