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Marchi e a normalização da extrema-direita

O tribalismo desculpatório que aconchega o Chega revela simplesmente a razão do seu sucesso: estes analistas condescendentes ou estão fascinados ou ficam calados com uma extrema-direita que, à força de imitar Abascal e Bolsonaro, consegue presença suficiente para condicionar o futuro da direita.

Ventura vende, desta feita pela mão do reputado investigador Riccardo Marchi, com a obra A Nova direita anti-sistema. O caso do Chega. Este texto é sobre a sua forma e alguns dos seus conteúdos, porque nem sempre a escrita enxuta e a informação abundante clareiam o compromisso deste livro.

Tomemos as coisas pelo que elas dizem ser: este livro não se assume como trabalho académico, mas como “ensaio”. Assim sendo, recorro ao artigo do Ciberdúvidas e aproveito Montaigne: “eu sou a matéria do meu livro.” Este livro é sobre o que Marchi sabe e queria saber; tem o tempo certo, antes da reconfirmação de Ventura como chefe do partido e no arranque da campanha para as presidenciais; é sobre a surpresa do investigador, que esperava um “empresário” para a captação da “demanda populista” nacional, ao invés de um filho dos subúrbios e do PSD. Este livro é sobre a dúvida que o investigador queria ver satisfeita, tal como Ventura: o partido ultrapassará o “one man show” e poderá ser o 3.º ou 4.º mais votado, já em 2023?

Fica, talvez, mais fácil encontrar Ventura através de Marchi. Muito mais humanizado do que imagens televisivas histriónicas, ele é filho da formação católica e dos subúrbios, em nome dos quais pode falar por saber bem o que é a insegurança; é combativo, persistente, tem uma intuição política ímpar e uma enorme capacidade de gerir tensões internas; é exímio comunicador e é pragmático, escreve Marchi. O Chega “é o projeto do André”, que, hostilizado pela comunicação social, está mais preocupado com a gestão da imagem e da comunicação do que com a cartilha ideológica, porque sabe que não é como líder de um partido de “extrema-direita” que alcança o que quer: reconfigurar a direita clássica e comer espaço ao PSD.

Deixando o líder, por ora, importa a classificação do partido e o empolamento da sua “novidade”. Marchi insere o Chega nos partidos populistas de direita radical, descolando-o da extrema-direita, pela distinção entre mudança por dentro e mudança por meios violentos. Esta é, aliás, uma distinção cara à Ciência Política. Esta é, também, a vocação confirmada pelos fundadores/as do partido, no quadro do forte pendor testemunhal da obra. Momento para questionar a operacionalidade histórica e política desta divisão, uma vez que nem a direita clássica é, nas democracias liberais ocidentais, reconfigurável com a suástica ao peito, e o historiador Enzo Traverso explicou bem, na sua leitura do pós-fascismo, esta necessidade de normalização, com o exemplo de Marine Le Pen, nem o adjetivo é isento, quando é auto-classificativo. Leiam o programa do Chega e as palavras de Diogo Pacheco de Amorim: se o radical é o que vai à raiz dos problemas para os resolver, o extremista é o que liquida o mundo real para salvar o seu (p. 9). Pergunte-se, então, à Ciência Política se a adjetivação “radical” não é o que interessa aos Venturas deste tempo, por lhes conceder a credibilidade que anseiam, favorecendo o “mainstream”.

Sobre a “novidade”, Marchi aceita a autoimagem expressa no programa do Chega – um “partido verdadeiramente novo”. Inúmeras expressões o atestam, a começar pelo início – o caso de “André Ventura com o seu Chega é inovador e único” (p. 19). Ora, nem o Chega é assim tão diferente das outras formações europeias, nem é “verdadeiramente novo”. Se o fosse, as obras de Jaime Nogueira Pinto não eram fundamentais na formação de Ventura, como Marchi não se cansa de sublinhar, nem Diogo Pacheco de Amorim era o homem do programa, vice do partido e membro do grupo parlamentar, demonstrando o peso da “Nova Direita” dos anos 80. Reconheça-se, ainda, que é o facto de estas formações estarem demasiado presas às suas especificidades nacionais que dificulta o sonho de Bannon sobre a internacional de extrema-direita. O mofo doutrinário também se pode encontrar nos escassos nomes de autores do século XX referidos no programa, como Von Mises e Hayek, dois patriarcas do neoliberalismo, sobre os quais Marchi escolhe esquecer o convívio com as ditaduras e a simpatia para com Pinochet ou Salazar.

Junte-se a constante abordagem da “hostilidade” da comunicação social ou os perfis falsos reduzidos a boato e percebe-se melhor o compromisso deste ensaio com a normalização do Chega de Ventura

A “novidade” está no poder comunicacional do homem. Mas não se espere qualquer análise sobre a instrumentalização ou sobre a “ventriloquia”, cara ao populismo – dizer uma coisa e o seu contrário, dizer uma coisa e fazer o seu contrário. Nem uma palavra sobre o valor instrumental das provocações, da convocatória da raiva, que põe o coração na boca, promove a identificação e a fusão ao alcance de um “like”, e permite as palavras do militante do Chega sobre Ventura: “Quando o oiço, oiço-me a mim” (p. 109).

A “novidade” está, também, presa à identidade “antissistema” do partido e à construção do mesmo. O Chega é um partido antissistema porque quer construir a IV República e mudar a Constituição, e populista porque quer combater a elite corrupta, afirma o autor. No espetro dos alvos a abater, o autor bem podia colocar a esquerda (com a sua “cultura de morte” e o seu “marxismo cultural”), mas escolhe não o fazer. Também não se pergunta o que é ser “antissistema” e viver dele. André Ventura entrou no PSD aos 14 anos, teve 20 anos de partido, é professor universitário, consultor de uma empresa, deputado, secundado por um núcleo duro, em boa parte feito de gente que veio do PSD e CDS, sem esquecer que o estudo da sua rede de amigos, padrinhos e relações daria um excelente livro sobre “o sistema”. Junte-se a constante abordagem da “hostilidade” da comunicação social ou os perfis falsos reduzidos a boato e percebe-se melhor o compromisso deste ensaio com a normalização do Chega de Ventura. Talvez por isso os seus defensores abdicaram de sustentar as conclusões da obra e limitaram-se a chorar um putativo desejo censório de quem não consegue reconhecer-se nesta operação justificativa. No caso, o tribalismo desculpatório que aconchega o Chega revela simplesmente a razão do seu sucesso: estes analistas condescendentes ou estão fascinados ou ficam calados com uma extrema-direita que, à força de imitar Abascal e Bolsonaro, consegue presença suficiente para condicionar o futuro da direita.

Artigo publicado em publico.pt a 16 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professora.
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