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Tique truque

Se o PS se lembrar da sua doutrina anterior, banal se considerarmos os poderes constitucionais, deveria passar um responso ao Governo pelo atual jogo de intimidação.

No debate na generalidade do Orçamento suplementar algumas vozes do PS, na verdade sem grande entusiasmo, ainda repetiram uma operação ensaiada no final da semana passada, quando um parecer jurídico foi distribuído aos partidos para lhes explicar que só podem apresentar propostas que o governo permita, quando se entrar na especialidade da lei. Essa doutrina extravagante afirma que os partidos não podem “desvirtuar” a proposta do governo e, mais, que só podem apresentar propostas no âmbito que este delimitar. O sofisticado argumento é que o Parlamento deve autorizar o Governo a aumentar a despesa, mas não pode decidir sem autorização do primeiro-ministro. A bem dizer, a operação derrapou no primeiro dia, veio o primeiro-ministro esclarecer que não foi bem o Governo que mandou o papel, foi só um secretário de Estado e à guisa de recordatória aos novatos que não conhecem os solenes hábitos de São Bento. Um ato benemérito, portanto, para que o Parlamento mantenha a compostura e se limite a aplaudir no momento devido o que for superiormente definido.

O travão

A alegação é que há uma “lei travão”, que impede o aumento da despesa durante a execução orçamental em curso. Ora, é precisamente por existir essa lei que o Governo tem que pedir ao Parlamento a aprovação do Orçamento suplementar, em resposta à crise pandémica. Então, estranho seria que o Governo pudesse propor alterar o limite da despesa, mas que a instituição perante a qual responde não pudesse fazê-lo. Acresce que a recordatória é cruel para este argumento: em orçamentos retificativos anteriores, o PS propôs aumentos de despesa ou reduções de receitas (diminuição do IVA para a restauração, por exemplo), que contrastavam, e legitimamente, com as propostas do Governo de então, ultrapassando o âmbito por ele proposto. Se o PS se lembrar da sua doutrina de então, aliás banal se considerarmos os poderes constitucionais, então deveria passar um responso ao Governo atual por este jogo de intimidação.

Percebe-se que o último processo orçamental foi um caos e que o Governo não o queira repetir. Mas essa foi então a escolha de Costa, que nos dias seguintes às eleições matou de morte matada a ‘geringonça’, pensando que depois deitaria os búzios perante oposições atemorizadas. Só que, como os partidos existem e estão obrigados a programas eleitorais, apresentam propostas. É incómodo para o Governo, mas é assim a democracia, os votos contam. Ora, contristado com as dificuldades que sentiu nesse debate do Orçamento para 2020, ainda para mais sobrepondo ao suplementar um calculista calendário de saída do ministro, mais uma vez por imposição das intrigas bizantinas no gabinete, alguém no Governo terá imaginado esta astúcia: arremetemos com um parecer jurídico que cala o Parlamento, impondo-lhe que só podem ser votadas as nossas propostas para alterar o Orçamento, ou as que permitirmos. Temo que o efeito seja o contrário e que, por isto, surjam mais propostas numa lei cuja discussão, não fora esta bravata do Governo, devia estar circunscrita a medidas de emergência, por prioridade e não por censura.

Juízo

Claro que ainda há uma solução, dizer que a culpa foi do idiota da aldeia, que é um equívoco, esqueçam-se de que falei. Não é elegante, é um desprimor para os doutores que assinam o parecer, mas já se viu pior. A alternativa do Governo seria ameaçar uma batalha parlamentar sobre a admissibilidade de propostas, que facilmente perderá, ou no limite uma querela jurídica levada ao Tribunal Constitucional. Mas esse caminho seria exponenciar o tique de um truque desajeitado até à categoria do apatetamento institucional, transformando um debate normal sobre uma proposta que até inclui algumas medidas consensuais numa amarga batalha de trincheiras. Mais vale parar agora. Haja juízo.

Artigo publicado no jornal Expresso a 20 de junho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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