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Depilação: uma construção patriarcal do “feminino”

À pergunta "porque é que nos depilamos?", as respostas começam sempre com a maior das mentiras sobre o nosso corpo: é mais higiénico. Depois passam para as questões estéticas: gosto mais assim, os pelos são feios. Por último, a toalha é atirada ao chão com “É uma escolha minha”. É verdade, é uma escolha nossa. Mas temos de perceber porquê. Artigo de Ana Catarina Marques.
Depilação: uma construção patriarcal do “feminino”
Fotografia de Núria Azevedo.

Lancei a discussão numa mesa de amigas: porque é que nos depilamos? Os argumentos de defesa começam sempre com a maior das mentiras apregoadas sobre o nosso próprio corpo: é mais higiénico. Depois passam para as questões estéticas: gosto mais assim, os pelos são feios. Por último, a toalha é atirada ao chão com “É uma escolha minha”. É verdade: é uma escolha nossa, mas temos de perceber o porquê.

Desde a origem das sociedades complexas que há utensílios de depilação. Lâminas, cremes, pinças, sempre fizeram parte da história da humanidade organizada socialmente. Mas nos seus primórdios nunca foram generalizados. A distinção entre quem fazia ou não a depilação era uma questão de estatuto económico e não de género. No Antigo Egipto já se utilizava tiras de tecido ou pele de animal banhados em cera de abelha para fazer remoção de pelos em todo o corpo. 

Foi na Grécia Antiga que o género ditou quem devia ou não depilar-se: Vénus não tem pelos púbicos, mas as representações masculinas em esculturas têm pequenos cachos de pelos em volta do sexo. Foi neste momento que os pelos começam a ser um direito exclusivo dos machos, considerando-se “máscula” a presença de pelos no corpo do homem e “feminina” a ausência de pelos no corpo da mulher. 

Durante a Idade Média a religião imperou e ditou novas regras: os pelos devem ser mantidos como sinal de castidade, reserva, pureza, e habitam partes do corpo que não devem ser mostradas em público. Mas no renascimento retomou-se a ideia de beleza feminina da Grécia Antiga: uma pele lisa e suave é o expectável de uma mulher, observemos a pintura Nascimento de Vénus e não encontramos um único pelo. Só com o Realismo e o Impressionismo é que voltamos a ter acesso a provas da existência de pelos no corpo feminino da Idade Moderna: L’Origene du monde é o exemplo mais descarado.

Foi no início do século XIX que alastrou pela mulher burguesa a ideia de um corpo “limpo”, liso e cuidado. A depilação nas pernas, axilas, sobrancelhas, buço e virilhas voltou a ser uma questão de classe. O boom massificador da depilação vem mais tarde, coincide precisamente com uma maior ocupação das mulheres no espaço público: começam a trabalhar, têm o seu próprio dinheiro, usam saias mais curtas. É nesta altura que se alastra o conceito estético de feminino que vigora até hoje - com o alicerce fundamental da publicidade, imprensa, moda, televisão, cinema e, posteriormente, erotismo e pornografia. Quem controla esses mercados? A burguesia capitalista patriarcal. Podemos assim questionar: quem controla os nossos corpos?

A sociedade burguesa, capitalista e patriarcal é que define as regras do nosso próprio corpo. Não apenas com leis e violência. Também a estética é uma construção social que, no caso do corpo da mulher, é altamente explorada e estereotipada pelos mecanismos de standartização do que é belo, limpo, aceitável, e… feminino. Os pelos nos homens não são considerados socialmente nojentos, descuidados e feios. A sua representação imagética existe, está normalizada e faz parte das características de qualquer ser humano macho. No caso deles, tirar os pelos é uma opção e não uma necessidade. Ninguém olha de lado para um homem de calções com pelos nas pernas, não nos rimos de uns caracóis a sair da camisa desabotoada, uma axila felpuda no autocarro não dá lugar a desdém e uma virilha peluda a apanhar sol na praia não é motivo de nojo. No caso das mulheres, os pelos aproximam-se de uma masculinidade que nos afasta do corpo-objeto. São, por isso, inaceitáveis.

A maioria dos homens visiona o corpo da mulher nua pela primeira vez na pornografia. Até poderá ter visto o corpo de irmãs, mães, tias, vizinhas, mas raros são os casos oportunos de olhar seriamente para uma vulva antes a vida sexual se iniciar. Podemos insinuar que é desta forma que a aprendizagem sobre o prazer é construída, bem como a idealização de práticas - e aqui entra não só a masculinidade sexual do homem e submissão total da mulher, como a criação de uma idealização estética da vulva. A nossa vulva é  representada como se fosse virgem, pura, infantil. Não será incómodo apercebermo-nos dessa objetificação do nosso corpo?

Quem nunca fez a depilação nas pernas a correr para ir à praia? Quem nunca preferiu vestir calças a usar saia por estar com pelos? Quem nunca pediu desculpa ou avisou um homem por não estar depilada nas “virilhas” (nome politicamente correto para “vulva”)? Quem nunca arrancou com pinças os dois pelos do mamilo? Todas nós. Somos as nossas principais julgadoras. Vemo-nos ao espelho e contamos os defeitos que temos. Não os vou enumerar a todos, este artigo é apenas sobre pelos: “as sobrancelhas precisam de ser arranjadas”, “o buço já está a crescer”, “tenho de marcar a esteticista”, “será que se notam estes pelinhos debaixo do braço?”, “nem pensar ir de saia!” - é o que pensamos quando nos confrontamos com o nosso próprio corpo. Faz sentido?

O movimento feminista em Portugal, nos últimos anos, tem centrado a sua luta nas questões da violência doméstica. Precisamos de julgamentos livres de juízos machistas, penas efetivas para os agressores, proteção imediata para as vítimas - é um facto. É urgente, não há como discordar. Mas será uma boa estratégia falarmos das mulheres apenas como vítimas? Não será necessário também apoderarmo-nos de quem somos e do nosso corpo? Não será também essa uma estratégia de combate a todas as violências machistas - inclusive a doméstica? Eu acredito que sim. Devemos empoderar-nos de quem somos. Não ponho em causa as prioridades do movimento feminista. No contexto atual, fazem todo o sentido. Mas tenhamos horizonte para pensarmos sobre nós próprias, o nosso corpo, falarmos umas com as outras sobre as opressões que controlam a nossa forma de existir.

Não proponho aqui - longe de mim - medir quem é mais feminista ou não pelas características estéticas que adotamos. Convido apenas ao exercício de pensarmos sobre o nosso o corpo, o corpo da mulher, e nos apercebermos de que forma a sociedade capitalista e patriarcal cria conceitos estéticos que vão ao encontro do interesse masculino - do que é sagrado, puro, limpo, imaculado - fazendo-nos cúmplices da adoção de padrões que são considerados femininos, inclusive, por nós próprias. Ninguém é menos anti-capitalista por beber uma coca-cola, da mesma forma que ninguém é menos feminista por fazer a depilação. Mas tal como temos noção do que a coca-cola representa, é bom que estejamos informadas sobre o que nos leva a não gostar dos nossos próprios pelos.


Artigo de Ana Catarina Marques.

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