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Tarifa social da água: se não agora, quando?

À crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 segue-se uma crise económica que agravará as desigualdades sociais e económicas. Ao Estado e aos poderes públicos cabe mobilizar todos os meios e recursos para não deixar ninguém para trás na resposta à crise. A automatização da tarifa social da água é um desses direitos básicos para um bem comum.

Os primeiros dados após o pico da pandemia são reveladores. Segundo o estudo da DECO, cada família portuguesa perdeu, em média, 944 euros desde o início da crise pandémica, aumentando as dificuldades no pagamento de despesas da habitação, telecomunicações, alimentação, energia e água. Esta perda de rendimentos afeta violentamente quem recebe menos. Segundo o Banco de Portugal, num cenário de quebra severa de rendimentos, os 20% mais pobres apenas conseguem cobrir despesas durante pouco mais de um mês recorrendo à riqueza que têm disponível. Os 20% mais ricos têm recursos para mais de um ano.

Para estas famílias, há uma data ameaçadora, marcada no calendário: o dia 30 de setembro

Para estas famílias, há uma data ameaçadora, marcada no calendário: o dia 30 de setembro. Esta é a data definida para o fim da garantia de não interrupção de serviços essenciais, tais como o fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas. A partir do dia 30 de setembro, as famílias cujo rendimento foi afetado em mais de 20% e que não consigam cumprir os planos de pagamentos, poderão ter estes serviços essenciais cortados. O prolongamento desta medida de proteção é uma necessidade defendida pelo Bloco de Esquerda, mas não dispensa mudanças estruturais em cada um destes serviços.

Automatizar a tarifa social da água

A existência de um regime de atribuição da tarifa social da água, aprovado em 2017, é o reconhecimento de um direito básico a um recurso potencialmente escasso que não deve ser alvo de discriminação ou exclusão no seu acesso público e universal. De acordo com esse regime (Decreto-Lei n.º 147/2017), cabe aos municípios financiar o desconto da tarifa social, em benefício dos agregados familiares em situação de carência económica. Em 2018, a Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) emitiu uma recomendação apontando claramente a aplicação deste instrumento como uma garantia necessária no acesso aos serviços de abastecimento público de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos.

O avanço deste regime, tão necessário à proteção no acesso a um bem comum, resulta hoje numa aplicação territorialmente muito desigual. Segundo os dados mais recentes, à não aplicação da tarifa social por parte de um número significativo de municípios soma-se a disparidade nos seus critérios de aplicação, desde o universo elegível aos níveis de consumo permitidos. Mas o maior problema está precisamente na falta da automatização da atribuição da tarifa. Ao contrário do que ocorre com a tarifa social da eletricidade, os consumidores precisam de pedir o acesso à tarifa social, estando sujeitos a um moroso e burocrático processo de verificação. Nestes concelhos, o número de beneficiários é, por isso, muitas vezes irrelevante e sempre muito menor que o dos agregados com acesso à tarifa social da eletricidade (que é atribuída de forma automática). Isso mesmo demonstrou o Bloco a partir de um inquérito às autarquias promovido em 2016 e, desde então, a situação pouco se terá alterado, apesar da aprovação do regime legal para acesso automático, ignorado pelas autarquias.

Em tempos de pandemia e de crise social, a aplicação do regime legal de acesso automático à tarifa social da água e resíduos é uma batalha a travar em todo o território

Em tempos de pandemia e de crise social, a aplicação do regime legal de acesso automático à tarifa social da água e resíduos é uma batalha a travar em todo o território, em linha com a recomendação do regulador. Está ao alcance dos municípios aderir ao mecanismo público da Plataforma de Interoperabilidade, que fornece aos operadores, a partir dos dados da Segurança Social e da Autoridade Tributária, a lista dos agregados que devem beneficiar automaticamente do desconto. Essa luta passa pelo nível autárquico e municipal mas não dispensa outros passos. O reconhecimento de um "direito à água" no quadro legal, reintroduzindo uma Autoridade Nacional da Água e assegurando à população carenciada a gratuitidade dos níveis mínimos de consumo (até 1500 litros mensais por pessoa), permitiria robustecer a aplicação automática da tarifa social, preservando as competências dos municípios e apoiando o seu financiamento.

Serviços concessionados: fatura pesada, risco para as populações

A garantia no acesso à água passa também pela defesa do modelo público. Muitas Câmaras Municipais decidiram, erradamente e sem consultar as populações, concessionar a privados os serviços de abastecimento e tratamento das águas. Resultado: tarifas muito acima da média, serviços e encargos pesados para as famílias. Nos concelhos onde os serviços estão entregues aos privados, as tarifas chegam a ser 76% mais altas do que no restante território. Em Portugal, há 33 concessões ativas, submetendo mais de dois milhões de pessoas a serviços privados no seu acesso à água. A presente crise veio revelar os perigos adicionais de concessionar a privados um bem comum e essencial.

O pior exemplo veio da Indaqua, grupo privado que passou pelas mãos da Mota-Engil, pela israelo-americana Miya e é hoje detida pela Bridgepoint, holding financeira internacional, dona da Sapec. Em pleno pico da pandemia, a Indaqua nada fez para que a subida das tarifas em Oliveira de Azeméis não ocorresse, garantindo da Câmara Municipal um pagamento de 260 mil euros em compensação pelo congelamento do aumento. Esta empresa, que explora sete concessões ativas em Portugal (Fafe, Santo Tirso/Trofa, Oliveira de Azeméis, Santa Maria da Feira, Matosinhos, Vila do Conde, S. João da Madeira), serve 600 mil habitantes a norte do país.

A luta pelo acesso à água enquanto bem comum exige a automatização da tarifa social e um modelo público e de qualidade para os serviços de abastecimento e tratamento das águas e resíduos

As concessões dos serviços de abastecimento e tratamento das águas seguiram o ruinoso modelo das PPP, assegurando aos privados rendas garantidas com base na superestimação contratual do universo de clientes e níveis de consumo. A diferença acaba agora a ser paga por consumidores e municípios. Isto mesmo está demonstrado desde 2014, numa auditoria demolidora destas concessões do Tribunal de Contas de 2014. Este modelo de abuso levou a Câmara Municipal de Mafra a resgatar a concessão, sendo diversos os municípios a tentar uma renegociação dos contratos. Mas os privados não baixam a guarda, como confirmam as declarações de Eduardo Marques, presidente da Associação das Empresas Portuguesas do Setor do Ambiente (AEPSA), segundo o qual, existe em Portugal "um grande espaço de manobra de aumento de tarifas".

Da crise sanitária à crise económica é necessário garantir que ninguém fica para trás nas respostas e soluções coletivas. A luta pelo acesso à água enquanto bem comum exige a automatização da tarifa social e um modelo público e de qualidade para os serviços de abastecimento e tratamento das águas e resíduos.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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