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#FicaEmCasa

Ter pessoas a viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou anos deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que este Governo tem dado.

Se não é novidade que a habitação é garantia de saúde, torna-se agora incontornável. Na leitura dos relatórios do Estado de Emergência e suas renovações, percebe-se que os principais focos de infecção em situação de confinamento advieram de contextos concretos: estruturas residenciais para idosos, alojamentos locais que albergam pessoas requerentes de asilo em Portugal, imigrantes trabalhadores da agricultura intensiva no Alentejo e Algarve e comunidades em situação de habitação indigna, nomeadamente barracas ou tendas. Nestas comunidades “amontoadas” falta habitação digna e possibilidade de distanciamento e confinamento nos dias que correm. Mas segundo a lei de bases estas já eram situações de “insalubridade, sobrelotação” e em “risco de promiscuidade”, no resto dos dias.

Durante estes últimos meses saíram dois relatórios que vieram reafirmar o que Leilani Farha tinha concluído já em 2016 quando veio a Portugal enquanto relatora da ONU para o direito à habitação: Portugal deixa de fora do acesso a uma habitação digna dezenas de milhares de pessoas. O Levantamento do IHRU feito em 2017 identificava quase 26.000 e não contava com uma grande parte destas populações: quase 30% dos municípios respondeu que não teria carências habitacionais.

Estas são pessoas que não se podem proteger do vírus. Ter pessoas a viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou anos deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que este Governo tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na Lei de Bases da Habitação e do que definem os Direitos Humanos mais básicos e as evidências de saúde pública, e não parece existir inversão.

Se não vejamos, numa famigerada Resolução do Conselho de Ministros, este Governo, e ao arrepio do que os municípios de Odemira e Aljezur solicitaram, entendeu permitir que a resposta inscrita neste documento fosse a de construir um gueto para milhares de trabalhadores agrícolas durante 10 anos – aquilo que define nessa decisão como período transitório. Já veio dar o dito pelo não dito, mas o que decidiu na altura foi mesmo isto, e a resolução continua em vigor.

Mais recentemente, durante a pandemia, percebemos que, através do Ministério da Administração Interna, entende que garantir habitação a requerentes de asilo durante meses é alojá-los em camaratas de hostels em Lisboa, empurrando a resposta que deveria ser directa para uma organização não-governamental. Neste caso, também o município de Lisboa não foi tido nem achado, quer na vertente do apoio social, quer na vertente da habitação, ou ainda do turismo e urbanismo. Recorrer a uma resposta temporária e turística para residência concedida como resposta do Estado Português é errado. De facto, quer o pelouro do turismo lhes poderia ter dito que não se trata de turismo; o da habitação que estas não são respostas habitacionais; e o dos direitos sociais que é um atropelo à dignidade humana que o Estado deveria velar.

Entretanto, no último Relatório do Estado de Emergência pode ler-se que existem “alguns hostels da cidade de Lisboa, onde residem inúmeros cidadãos estrangeiros” e que as entidades do Estado entendem que “as condições de alojamento nas unidades hoteleiras em questão, embora dignas, não se adequam ao necessário distanciamento social exigido pelo combate à pandemia.” O único problema aqui parece ser o raio do vírus. Não é.

Passar ao lado da omissão profunda nas condições de “refúgio” digno e de saúde pública é o maior erro da nossa democracia e a nossa principal fragilidade social

O problema é a perspectiva omissa sobre o direito à habitação no nosso país. É por isso urgente que se envolva o Ministério da Habitação para que mobilize edificado em grande escala para responder por um serviço nacional que garanta um parque de habitação pública, integradora, digna e salubre. Mas é também primordial que a regulamentação da lei do Alojamento Local saia da gaveta e que este deixe de poder ser carne e peixe, conforme o que der mais lucro. E por fim, que a ASAE tenha instruções para definir estes espaços como o que têm sido: arrendamento habitacional em que as pessoas não podem viver em camaratas.

Passar ao lado da omissão profunda nas condições de “refúgio” digno e de saúde pública é o maior erro da nossa democracia e a nossa principal fragilidade social. A total liberalização do uso da habitação de Cristas que este Governo não quis reverter só piorou. Continuar a não dar centralidade a este direito é persistir no erro e acrescentar crise à crise e doença à doença.

Artigo publicado em publico.pt a 18 de maio de 2020

Sobre o/a autor(a)

Designer gráfica e ativista contra a precariedade. Dirigente nacional do Bloco de Esquerda
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