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Os ciganos

O problema dos ciganos é o “os”, esse “os” generalizador que é sempre instrumento de estigmatização coletiva e de desdiferenciação do que é heterogéneo. A estratégia da extrema direita começa aí, nesse uso de amálgamas para estigmatizar grupos inteiros.

O problema dos ciganos é o “os”, esse “os” generalizador que é sempre instrumento de estigmatização coletiva e de desdiferenciação do que é heterogéneo. Tão generalizador e tão manhoso como foi o “os” de “os portugueses” na frase “os portugueses vivem acima das suas possibilidades” com que os troikistas agrediram tanta gente. Tão generalizador e tão abusivo como é o “os” de “os islamitas”, de “os políticos” ou de “os imigrantes” que antecedem invariavelmente desqualificações de conjunto.

A pequenez da extrema direita não alcança a importância cultural de ciganos como Django Reinhardt, Charlie Chaplin ou Joaquin Cortés

A estratégia da extrema direita começa aí, nesse uso de amálgamas para estigmatizar grupos inteiros. Um exemplo: diz o discurso da extrema direita que “o cigano” (uma forma ainda mais desdiferenciadora do que “os ciganos”) se caracteriza por desdenhar a lei. Algo tão estúpido e pérfido como, por causa duns quantos chico-espertos que se dedicam à aldrabice profissional, dizer que “o português é um vigarista”.

O outro problema dos ciganos é que têm uma cultura. “Ah, porque a cultura deles nunca se adaptou à nossa”, “toda a gente sabe que a cultura deles é contrária à nossa nisto e mais naquilo”. Pois. Não tivessem cultura, os atrevidos, e estaríamos bem. Abdicassem de ser como foram sendo ao longo de séculos ou voltassem para a terra deles! Espera lá, mas qual terra? Tornassem-se iguais a nós e… Espera lá, mas “a nossa cultura” é o quê? A que se expressa na violência doméstica de uns quantos? A que se edificou sobre o colonialismo e o racismo? Todas as culturas são compósitas e todas se transformam no tempo. A estratégia da extrema direita começa aí, nessa ficção de uma cultura (a “deles”) parada no tempo, monobloco, associada a comportamentos marginais e inferior a outra cultura (“a nossa”), aberta, reflexiva e virtuosa e que, por ser assim, aquela deve ser acantonada e submeter-se a esta. A pequenez da extrema direita não alcança a importância cultural de ciganos como Django Reinhardt, Charlie Chaplin ou Joaquin Cortés. E menos ainda valoriza que muita gente anónima de etnia cigana contribua há séculos para a moldagem do melhor que a nossa vida coletiva tem.

Claro que há um terceiro problema dos ciganos. É que, na sua grande maioria, são pobres, na sua grande maioria vivem mal, na sua grande maioria têm uma escolaridade reduzida, na sua grande maioria têm profissões precárias e pouco qualificadas com especial incidência na economia informal. Disto, a extrema direita não quer saber. E menos ainda de políticas para que assim deixe de ser.

Artigo publicado no diário “As Beiras”, a 9 de maio de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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