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A politização da mentira

Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Por Rodrigo Afonso Silva, ativista estudantil e membro da Greve Climática Estudantil

Vivemos na era humana mais conectada de sempre e ao mesmo tempo vivemos numa época onde mentiras são parte de programas políticos, onde espaços que se dedicam a analisar contra-informação são ferramentas preciosas e onde o termo fake news foi palavra do ano de 2017 para o Collins Dictionary’s.

Atira-se então a palavra negacionismo. Negacionismo é a posição ideológica de recusa sistemática da veracidade de um facto ou conceito que pode ser verificado empiricamente. Vai para além da negação em si, pois esta é apenas uma posição de rejeição em relação a um dado acontecimento. O negacionismo vai mais longe, afirmando que não existe algo para rejeitar em primeiro lugar.  É portanto uma recusa da realidade empírica no seu total e não apenas de um dado particular dessa realidade.

O negacionismo ‘clássico’ aparece um pouco por toda a História da Ciência quando esta parte da análise empírica do Mundo para a análise racional do Universo. É mais difícil negar a comestibilidade de um cogumelo do que o Heliocentrismo. Pois uma é verificada com a atividade prática, basta comer o cogumelo e perceber se é venenoso ou não, enquanto a outra se baseia em cálculo matemático e físico que nem todas temos o conhecimento para entender.

No entanto o negacionismo não é a negação de um sistema de crenças, mas a sua reposição por outro, ficando fácil perceber porque é que este age como se funcionasse em nome da ciência e não contra esta, apesar de ter como ponto de partida a crença e o interesse pessoal invés da observação empírica. O negacionismo pretende assim criar uma ruptura no significado de Ciência, atribuindo-lhe a conotação de “conjunto dos conhecimentos e das práticas deles decorrentes numa determinada época ou civilização” querendo esquecer que esta é também “o conjunto sistematizado de conhecimentos obtidos mediante observação empírica e pesquisa metódica e racional, a partir dos quais é possível deduzir fórmulas gerais passíveis de aplicação universal e de verificação experimental”. Este esquecimento propositado do Método Científico tem por objetivo colar à Ciência aquele que na verdade é o ponto de princípio do negacionismo: um interesse pessoal e ideológico no que é transmitido como verdade. Politiza-se a mentira.

“O conceito de Aquecimento Global foi criado pelos chineses e para o chineses, de maneira a tornar a produção americana não competitiva” – Donald Trump, 6/11/2012 via Twitter. Analisando esta frase, que parecia na altura apenas mais um exemplo comum do negacionismo da direita americana, verificamos como é atirada ao ar sem grande pensamento. Isto não é como o negacionismo tradicional funciona. Apesar de partir de bases de interesse próprio, vimos que o negacionismo parte em busca de fornecer todo um sistema de crenças alternativo, mascarando esse interesse particular do indivíduo com décadas de simulação de método científico.

Surge assim a imagem de pós-negacionismo que se constrói no trabalho de fabrico de pseudo-argumentos que o negacionismo fez durante anos mas revela um desejo mais profundo: reconstruir a verdade invés de oferecer uma interpretação alternativa desta. O pós-negacionismo torna-se um inimigo ainda mais perigoso para a sociedade, utilizando falácias, crenças religiosas, xenófobas ou nacionalistas procurando destruir a imagem pública de factos científicos. Não precisa de oferecer uma alternativa ao sistema científico, procurando até muitas vezes não negar o processo como um todo, mas invés disso ir alterando apenas pequenas partes, como uma forma de causar menos choque na sociedade e mesmo assim manter os interesses particulares dos negacionistas.

Baseia-se em statements, não em factos, com o objetivo de manter o business as usual de um sistema capitalista que provoca uma crise responsável pela morte de mais de 4,2 milhões de pessoas por ano, segundo a OMS. Esta é a mesma inércia que nos diz que a forma de lidar com a crise climática é fazer pequenas mudanças e dando incentivos às empresas “mais verdes”, esperando alcançar a neutralidade carbónica em 2050, Painel para as Alterações Climáticas da ONU afirmar que será impossível evitar um aumento de 2oC na temperatura terrestre se a neutralidade carbónica não for atingida mundialmente em 2028.

Como se tem verificado durante a atual epidemia de Covid-19 o negacionismo traz consequências gravíssimas à sociedade. A recusa de declarar estados de emergência, fechar negócios ou tomar ações que pudessem prejudicar o sistema capitalista já custou imensas vidas em países como os EUA, o Brasil ou o Reino Unido, prevendo-se que a crise de saúde seja particularmente mais intensa e mortal.

É aqui que a Ciência surge como o instrumento da cidadania para combater o negacionismo. O indivíduo que soube analisar a vontade geral, não como a vontade do Estado ou a soma das vontades individuais, mas a vontade que cada uma de nós tem quando tomamos uma atitude de pensar, objetiva, racional e geral tendo em conta o restante da sociedade para além da consciência sensível, consegue perceber o perigo do negacionismo. Apenas uma interpretação verdadeiramente lógica da realidade permite agir em interesse comum e apenas o interesse comum consegue garantir o bem-estar de todos. Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Partindo daqui, não só é possível fazer uma melhor distribuição da riqueza gerada, como garantir que a sociedade humana coexiste com o resto da vida terrestre e que garante o seu futuro a longo prazo e de forma sustentável.

É assim que surgem com extrema importância campanhas como a Empregos Para o Clima, que apresenta um projecto estruturado para a criação de mais de 100 mil empregos dignos em áreas de combate às alterações climáticas e para a requalificação de trabalhadores e trabalhadoras de setores poluentes. Iniciativas como esta permitem manter uma economia justa e estável, que seja também social e ambientalmente responsável e são de imensa necessidade por todo o Mundo como forma de assegurar uma transição justa na forma como os meios de produção são controlados.

A Ciência torna-se assim uma ferramenta na luta contra o negacionismo pelo interesse comum da sociedade humana, sendo guia orientador da decisão política, mas também uma força motora para o ativismo político. A partir da iniciativa da jovem sueca Greta Thunberg de convocar greves estudantis apelando à neutralidade carbónica e à ação governamental, mais de 5 milhões de pessoas por todo o Mundo chegaram a estar na rua a exigir justiça climática.

Numa época de negacionismo utilizado pelo capitalismo e pelos ideais neo-fascistas, é inspirador ver como a melhor ferramenta para responder e desconstruir este fabrico de realidades feito em benefício de minorias, em prejuízo da maioria, é a mesma que fez e faz tanta gente politizar-se e unir-se em exigência de um futuro, digno, de qualidade, com igualdade entre seres humanos e em comunhão com a Natureza.

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Neste dossier:

Transformar a Academia

Transformar é a palavra de ordem para os temas deste dossier: Democratização do governo das instituições de Ensino Superior, combate à precariedade laboral, a luta anti-propinas, por mais financiamento público e uma Ação Social que não deixe ninguém de fora.  E a centralidade do conhecimento científico para enfrentar a crise que vivemos. Dossier organizado por Luís Monteiro.

O Ensino da Economia na Universidade portuguesa

O ensino da economia nas universidades portuguesas é acanhado, acrítico e desligado dos verdadeiros desafios que a disciplina se propõe a enfrentar. Por André Francisquinho, Estudante de Economia na UNL.

 

Somos todos bem-vindos (?)

Há barreiras enormes no acesso ao ensino superior para os alunos do ensino regular, quer pelo método de seleção, alojamento, propinas, despesas. Nos cursos profissionais, a situação não é diferente. Apenas 18% dos estudantes do ensino profissional prosseguem estudos para o Ensino Superior. Por Eduardo Couto, Ativista Estudantil e LGBTI+, estudante do Ensino Profissional
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Por uma gestão democrática do ensino superior

É precisamente a ausência de democracia e poder real nas mãos dos estudantes, que o sabem concentrado num sistema piramidal e em interesses alheios ao serviço público, que os tem afastado da participação. Por Eduardo Esteves, estudante de Direito na UP, e Pedro Moura, estudante de Ciência política na UM.

Saúde Mental no contexto universitário

Quando se é jovem e se está a começar uma vida como estudante do ensino superior, é-nos exigida a paz de espírito, o controle e a felicidade porque com a nossa idade ‘’ainda não existe experiência de vida suficiente para se estar mal”. No entanto, os números não mentem. Por Catarina Ferraz, ativista estudantil e social. Aluna do Ensino Superior.

 

Somos a voz adormecida que precisa de ser acordada

Se somos os mais preparados, então saibamos utilizar essa ferramenta para transbordar o papel do estudante enquanto agente passivo de um futuro mercado de trabalho explorador e excludente. Por António Soares, ativista estudantil na Universidade do Minho.

 

Sobre a gestão da Carreira Docente (concursos e progressão)

Talvez por tradição, a gestão de carreiras no Ensino Superior é notavelmente singular porque parece que estas instituições têm um procedimento que mais organização nenhuma tem em Portugal ou no estrangeiro. Por Rui Penha Pereira, Docente do Ensino Superior
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RJIES: tirar o esqueleto do armário

As instituições que adotaram o regime fundacional passaram a reger-se pelo direito privado em várias áreas, nomeadamente, na gestão financeira, patrimonial e do pessoal. A passagem a este regime revelou-se sinónimo de precarização das relações laborais de docentes, não-docentes e investigadores. Por Tomás Marques, estudante universitário e ativista estudantil.

 

Humanizar e Artestizar

As humanidades e artes continuam a ser os cursos a quem se pergunta o que fará da vida com isso. São áreas deficitárias que, enquanto se gasta dezenas de milhões para atrair (com cursos de gestão e afins) estudantes de países ricos, mantêm alunos de faculdades de Letras ou de Belas Artes a conviver com a degradação e até com a insalubridade. Por Pedro Celestino, Ativista Estudantil na Universidade de Lisboa

 

Para uma mudança do paradigma: o ensino superior a Nordeste

As instituições de ensino superior e as unidades de investigação desenvolvem as suas atividades recorrendo ao “exército” de bolseiros de investigação criado pela FCT que dá cobrimento ao já velho corpo docente que é, muitas vezes, um entrave à legalização da contratação dos recentes doutorados. Por Pedro Oliveira, Assistente convidado (precário) no Instituto Politécnico de Bragança.

A Universidade: do Elitismo à sua Democratização

Não podemos continuar a assumir, de uma forma indireta, que o aumento do número de alunos no Ensino Superior em Portugal vale por si só. É preciso saber, ao mesmo tempo, aumentar a qualidade desse Ensino. Por Catarina Rodrigues, estudante e ativista.

“Dura Praxis, Sed Praxis”

Desde o horrível caso do Meco, que a sociedade civil se debruçou sobre este fenómeno social com outros olhos. Mas o que é, ao certo, a praxe? Um grupo de estudantes? Uma “instituição” académica? Uma seita? Uma tradição? Por Miguel Martins, ativista social e estudantil. Estudante do Ensino Superior
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O mal-estar da Universidade

Esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração. Por Pedro Levi Bismarck, Arquiteto e Docente Precário na Universidade do Porto

 

A Universidade em tempo de crise: democracia precisa-se!

A entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores.  Por Ernesto Costa, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra

 

O que é que o COVID-19 nos ensinou sobre a Ciência?

Depois desta pandemia passar, tem de ser pensada a criação de um programa de literacia cientifica. Não precisamos todos de perceber a fundo a investigação toda que se faz, deixemos isso aos investigadores profissionais. Mas seremos um país melhor se toda a gente perceber conceitos básicos de Ciência. Por Ana Isabel Silva, Investigadora do i3s e Ativista contra a Precariedade

 

A politização da mentira

Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Por Rodrigo Afonso Silva, ativista estudantil e membro da Greve Climática Estudantil

 

Desigualdade de género no Ensino Superior

Apesar de as mulheres, no geral, serem mais graduadas que os homens – existem mais mulheres licenciadas, mestres ou doutoradas do que homens - , são ainda quem ganha menos e quem tem menos acesso a posições de liderança dentro e fora das Instituições de Ensino Superior. Por Leonor Rosas, estudante universitária, ativista estudantil e feminista.

 

O Ensino Superior Politécnico em Portugal

Com o passar do tempo o ensino superior politécnico e o ensino universitário sofreram uma aproximação em algumas áreas científicas que se materializou no ministrar de licenciaturas de caráter semelhante. Mas esta aproximação não resultou numa uniformização ao nível do ensino e da carreira docente. Por Rui Capelo, estudante do Instituro Politécnico de Setúbal.

O (Sub)Financiamento do Ensino Superior e a Propina

Devido ao subfinanciamento crónico do Ensino Superior, houve um aumento cada vez maior do peso das propinas no financiamento das IES. Por consequência, apesar de a Propina poder variar entre o valor mínimo e máximo, tendo as IES autonomia nesta decisão, o valor fixado é sempre muito próximo do máximo, de forma a contrapor o subfinanciamento. Por Ana Isabel Francisco, Ativista Estudantil na FCT UNL.

 

O mantra da “Autonomia Responsável”

O confinamento ou o Estado de Emergência não podem servir de pretexto para comprimir a fraca vivência democrática que o RJIES trouxe ao Ensino Superior. Por Luís Monteiro, Museólogo e Deputado do Bloco de Esquerda.

O regresso à anormalidade

A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. Por Miguel Cardina, Historiador e Investigador do CES-UC.

A Ciência Desconfinada

Como vamos “desconfinar” a ciência? Volta para o seu cantinho semi-escondido? Continuará ser um sector cronicamente subfinanciado? Continuará a ser a campeã da precariedade? Ou terá finalmente o reconhecimento que merece? Por Teresa Summavielle, Investigadora do i3S.