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A politização da mentira
Vivemos na era humana mais conectada de sempre e ao mesmo tempo vivemos numa época onde mentiras são parte de programas políticos, onde espaços que se dedicam a analisar contra-informação são ferramentas preciosas e onde o termo fake news foi palavra do ano de 2017 para o Collins Dictionary’s.
Atira-se então a palavra negacionismo. Negacionismo é a posição ideológica de recusa sistemática da veracidade de um facto ou conceito que pode ser verificado empiricamente. Vai para além da negação em si, pois esta é apenas uma posição de rejeição em relação a um dado acontecimento. O negacionismo vai mais longe, afirmando que não existe algo para rejeitar em primeiro lugar. É portanto uma recusa da realidade empírica no seu total e não apenas de um dado particular dessa realidade.
O negacionismo ‘clássico’ aparece um pouco por toda a História da Ciência quando esta parte da análise empírica do Mundo para a análise racional do Universo. É mais difícil negar a comestibilidade de um cogumelo do que o Heliocentrismo. Pois uma é verificada com a atividade prática, basta comer o cogumelo e perceber se é venenoso ou não, enquanto a outra se baseia em cálculo matemático e físico que nem todas temos o conhecimento para entender.
No entanto o negacionismo não é a negação de um sistema de crenças, mas a sua reposição por outro, ficando fácil perceber porque é que este age como se funcionasse em nome da ciência e não contra esta, apesar de ter como ponto de partida a crença e o interesse pessoal invés da observação empírica. O negacionismo pretende assim criar uma ruptura no significado de Ciência, atribuindo-lhe a conotação de “conjunto dos conhecimentos e das práticas deles decorrentes numa determinada época ou civilização” querendo esquecer que esta é também “o conjunto sistematizado de conhecimentos obtidos mediante observação empírica e pesquisa metódica e racional, a partir dos quais é possível deduzir fórmulas gerais passíveis de aplicação universal e de verificação experimental”. Este esquecimento propositado do Método Científico tem por objetivo colar à Ciência aquele que na verdade é o ponto de princípio do negacionismo: um interesse pessoal e ideológico no que é transmitido como verdade. Politiza-se a mentira.
“O conceito de Aquecimento Global foi criado pelos chineses e para o chineses, de maneira a tornar a produção americana não competitiva” – Donald Trump, 6/11/2012 via Twitter. Analisando esta frase, que parecia na altura apenas mais um exemplo comum do negacionismo da direita americana, verificamos como é atirada ao ar sem grande pensamento. Isto não é como o negacionismo tradicional funciona. Apesar de partir de bases de interesse próprio, vimos que o negacionismo parte em busca de fornecer todo um sistema de crenças alternativo, mascarando esse interesse particular do indivíduo com décadas de simulação de método científico.
Surge assim a imagem de pós-negacionismo que se constrói no trabalho de fabrico de pseudo-argumentos que o negacionismo fez durante anos mas revela um desejo mais profundo: reconstruir a verdade invés de oferecer uma interpretação alternativa desta. O pós-negacionismo torna-se um inimigo ainda mais perigoso para a sociedade, utilizando falácias, crenças religiosas, xenófobas ou nacionalistas procurando destruir a imagem pública de factos científicos. Não precisa de oferecer uma alternativa ao sistema científico, procurando até muitas vezes não negar o processo como um todo, mas invés disso ir alterando apenas pequenas partes, como uma forma de causar menos choque na sociedade e mesmo assim manter os interesses particulares dos negacionistas.
Baseia-se em statements, não em factos, com o objetivo de manter o business as usual de um sistema capitalista que provoca uma crise responsável pela morte de mais de 4,2 milhões de pessoas por ano, segundo a OMS. Esta é a mesma inércia que nos diz que a forma de lidar com a crise climática é fazer pequenas mudanças e dando incentivos às empresas “mais verdes”, esperando alcançar a neutralidade carbónica em 2050, Painel para as Alterações Climáticas da ONU afirmar que será impossível evitar um aumento de 2oC na temperatura terrestre se a neutralidade carbónica não for atingida mundialmente em 2028.
Como se tem verificado durante a atual epidemia de Covid-19 o negacionismo traz consequências gravíssimas à sociedade. A recusa de declarar estados de emergência, fechar negócios ou tomar ações que pudessem prejudicar o sistema capitalista já custou imensas vidas em países como os EUA, o Brasil ou o Reino Unido, prevendo-se que a crise de saúde seja particularmente mais intensa e mortal.
É aqui que a Ciência surge como o instrumento da cidadania para combater o negacionismo. O indivíduo que soube analisar a vontade geral, não como a vontade do Estado ou a soma das vontades individuais, mas a vontade que cada uma de nós tem quando tomamos uma atitude de pensar, objetiva, racional e geral tendo em conta o restante da sociedade para além da consciência sensível, consegue perceber o perigo do negacionismo. Apenas uma interpretação verdadeiramente lógica da realidade permite agir em interesse comum e apenas o interesse comum consegue garantir o bem-estar de todos. Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Partindo daqui, não só é possível fazer uma melhor distribuição da riqueza gerada, como garantir que a sociedade humana coexiste com o resto da vida terrestre e que garante o seu futuro a longo prazo e de forma sustentável.
É assim que surgem com extrema importância campanhas como a Empregos Para o Clima, que apresenta um projecto estruturado para a criação de mais de 100 mil empregos dignos em áreas de combate às alterações climáticas e para a requalificação de trabalhadores e trabalhadoras de setores poluentes. Iniciativas como esta permitem manter uma economia justa e estável, que seja também social e ambientalmente responsável e são de imensa necessidade por todo o Mundo como forma de assegurar uma transição justa na forma como os meios de produção são controlados.
A Ciência torna-se assim uma ferramenta na luta contra o negacionismo pelo interesse comum da sociedade humana, sendo guia orientador da decisão política, mas também uma força motora para o ativismo político. A partir da iniciativa da jovem sueca Greta Thunberg de convocar greves estudantis apelando à neutralidade carbónica e à ação governamental, mais de 5 milhões de pessoas por todo o Mundo chegaram a estar na rua a exigir justiça climática.
Numa época de negacionismo utilizado pelo capitalismo e pelos ideais neo-fascistas, é inspirador ver como a melhor ferramenta para responder e desconstruir este fabrico de realidades feito em benefício de minorias, em prejuízo da maioria, é a mesma que fez e faz tanta gente politizar-se e unir-se em exigência de um futuro, digno, de qualidade, com igualdade entre seres humanos e em comunhão com a Natureza.
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