Uma reportagem do “Financial Times” desta semana apresenta declarações surpreendentes de alguns dos responsáveis das maiores empresas da indústria farmacêutica. Em resumo, põem em cima da mesa uma chantagem: precisamos de milhares de milhões de dólares nas nossas contas antes de começarmos a produzir qualquer vacina. E acrescentam um apelo, que os governos se entendam para tomar conta da distribuição mundial da vacina, quando ela existir. Esta curiosa combinação de capitalismo ganancioso e de socialismo planificador é o retrato da pandemia.
Eles querem lucros
Começo pela ganância, afinal ela vem sempre primeiro. David Loew, vice-presidente da Sanofi Pasteur, quer rios de dinheiro antes mesmo da certeza de que uma vacina resulte: “Se a indústria não souber como vai estar o mercado daqui a 18 meses, não pode pagar todos os custos.” A preocupação com o mercado, explica Loew, é que se poderia repetir o que se passou com o ébola ou com a gripe de 2009, passado o susto a procura decresce. Ou seja, se os curamos, os doentes passam a ser um problema, não compram mais medicamentos. Christophe Weber, executivo da japonesa Takeda, explica que “o meu medo é que, depois da epidemia, toda a gente se desinteresse”. Yusuf Hamied, diretor da Cipla, grande produtor farmacêutico na Índia, reforça que “não podemos assumir todos os custos”, lembrando que, em 2009, estava a produzir um antiviral cuja procura caiu depois do susto da gripe. David Ricks, presidente da Eli Lilly, e também da Federação Internacional de Produtores Farmacêuticos, apela ao apoio dos governos, explicando com candura que “não deve haver quem obtenha vantagens, concordo a 100%. Mas os investidores dão-nos capital e esperam um lucro”.
O coro de dirigentes da Big Pharma descreve o seu receio. De facto, eles demonstram que a indústria privada é incompetente para conduzir a investigação científica de base
O coro de dirigentes da Big Pharma descreve o seu receio. De facto, eles demonstram que a indústria privada é incompetente para conduzir a investigação científica de base. Sem o aguilhão do lucro fácil, os seus laboratórios resumem-se ao mercado imediato e não investem no que demora e mobiliza recursos para medicamentos cuja rentabilidade futura é desconhecida. E o mercado exclui: quando o Brasil e a África do Sul lutaram contra as multinacionais farmacêuticas para disporem de tratamentos para o VIH a preço comportável, foi só quando ameaçaram produzir genéricos sem autorização que as empresas aceitaram negociar. Considerando estas estratégias de lucro, percebe-se porque é que, apesar de a classe dos coronavírus ser conhecida há décadas, estamos ainda desprotegidos perante os seus riscos. O mesmo critério se aplicou a outras doenças: como o ébola ficou no Sul do planeta e não ameaçou os países do Norte, as pesquisas para o tratamento foram desvalorizadas. Assim, se não são laboratórios universitários e públicos a assumir a linha da frente da investigação científica, o mundo fica mais vulnerável.
O público é a nossa salvação
E é aqui que entra a versão socialista e planificadora das grandes farmacêuticas, pedem que os governos se entendam e dirijam a distribuição da futura vacina. Têm razão. No mesmo sentido, Seth Berkley, presidente da Gavi, um fundo internacional para as vacinas, diz que “precisamos de um acordo sobre o acesso e produção dado o risco, para comprar grandes quantidades a preços baratos para distribuir nos países com baixo rendimento”. Ou que, “se não houver solidariedade mundial, a pandemia afetará mais algumas regiões e levará a migração”. Severin Schwan, presidente da Roche, suíça, pede um acordo entre os governos para gerir a distribuição de medicamentos.
A ordem mundial do caos é a maior ameaça contra os pobres do Norte do planeta e contra todo o seu Sul
Considerando o que a Casa Branca já tentou fazer, apropriando-se de carregamentos em aeroportos internacionais e tentando adquirir o exclusivo de remédios preparados em empresas estrangeiras, a disputa pelo stock da futura vacina é um perigo. Só o evitamos se umas Nações Unidas dirigirem a sua distribuição. Não é fácil, mas se não for assim já sabemos quem serão os sacrificados. A ordem mundial do caos é a maior ameaça contra os pobres do Norte do planeta e contra todo o seu Sul.
Artigo publicado no jornal “Expresso” em 24 de abril de 2020