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Agora não estamos a falar de Arte

O estado de emergência em que vivemos tem esta natureza quase trágica de exigir comprometimento. Convoca inteligência, conhecimento, o descer à rua, à terra.

Exige percepção e objectividade, um acto cirúrgico que eleve o sentido de oportunidade da resposta a um momento clarificador que não se desperdice num enorme desapontamento.

Exige dimensão. Pode - e deveria ser - o tempo de ajustar a realidade às suas naturais diferenças, exaltar o sentimento de pertença. À transparência é quase uma pulsão performativa: há que fazer opções. E essas opções, as que são tomadas neste momento de enorme exigência, dizem muito sobre a verdadeira dimensão de quem as pensa, valora e executa. Olhando para a forma como o Governo tem respondido à situação dramática em que se encontra a comunidade artística, é desastroso constatar que escolheu fazer o seu caminho pelo lado de fora.

Encontramos, então, o primeiro capítulo sobre a tentação da facilidade, insuficiência e da falta de compreensão do momento. O milhão de euros, anunciado pela ministra da Cultura, como primeira linha de resposta à crise é, para utilizar palavras brandas, manifestamente insuficiente. Se o valor é risível, pior é perceber que se crie um apoio à criação como primeira linha de resposta do Estado, num momento em que boa parte da comunidade artística se prepara para passar fome. Fomos, portanto, confrontados com um novo paradigma criativo em que o limiar da sobrevivência é, por estímulo governamental, decretado como a forma última de arte. É como se nos dissessem: sobreviva e crie.

Não é por acaso que tantos artistas, autores, entidades, fundações, sindicatos, associações, plataformas e agentes da comunidade artística falam a uma só voz e procuram criar fundos de emergência. Não é por excesso de tempo livre que músicos, actores, bailarinos e técnicos se agrupam informalmente em debates, movimentos, manifestos, cartas e apelos, para repensar e criar condições para se fazerem ouvir. É que à custa da cultura nunca se ter sentado à mesa do Orçamento do Estado, agora não há pão.

Toda a actividade artística foi cancelada ou adiada. O sector cultural será dos últimos a retomar um simulacro de normalidade. Este modelo cultural torto e injusto, assente na remuneração dos espectáculos ao vivo porque o mercado digital só remunera verdadeiramente empresas e intermediários, terá que contar os dias para o seu fim. A percepção tornou-se visível, materializou-se. Mas quem cuida do "até lá"? Chegou o momento de convocar o Estado a olhar para os intermitentes sem intermitência. O caso pessoal de cada artista passou a ser um caso colectivo que só pode ter uma solução colectiva.

Da estupefacção e do embaraço perante as boas intenções. A ideia peregrina do festival de música "TV Fest", em boa hora cancelado, assemelhava-se a alguém que se dirige a uma comunidade no limiar da sobrevivência e atira com Ferrero Rocher a alguns. Mas o Ministério da Cultura ainda não percebeu que agora não estamos a falar de Arte?

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 10 de abril de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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