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Dar e receber

Passaram 15 dias e já poucos discutem se o estado de excepção era ou não necessário.

Volvidas duas semanas da instauração do estado de emergência, algo verdadeiramente singular na já-pouco-tenra democracia portuguesa, enterraram-se os gritos de revolta e os apelos lancinantes à preservação da democracia que ameaçava ruir. Os teóricos das medidas não proporcionais desapareceram proporcionalmente ao crescimento do número de infectados. Intimamente, até António Costa se declarará convencido. Agora que o estado de emergência foi renovado por mais 15 dias, todos percebem que esta excepção prevista constitucionalmente num Estado democrático não significa músculo e usurpação de liberdades, mas antes razão e bom senso. Todos? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis liberais ainda resiste à emergência.

À semelhança dos gauleses de Uderzo e Goscinny, acredito que a única coisa que os liberais temem é que o céu caia nas suas cabeças. É o tempo do temor dos tempos e esta súbita calamidade já se encarregou de ressaltar a dupla personalidade: pedinchões quando correm para o colo do Estado, heróicos quando tratam do seu próprio bolso. Este jogo de "não dar e receber" contraria as melhores linhas da canção de Variações, que apesar das mutações que o nome indica, seria incapaz de tantos flic-flacs à retaguarda como os nossos novos liberais: "Dar o direito a toda a voz/ Esse respeito que queremos para nós". Democratas nos costumes e centristas por garganta, a questão coloca-se mesmo na dimensão do respeito.

O voto contra o estado de emergência não se limita a isolar a Iniciativa Liberal na demagogia. É uma espécie de mix entre procissão de fé e um auto de sequestro individual. Exigem ao Estado que responda mas abominam que o Estado assuma. Mesmo numa crise humanitária e de saúde pública sem precedentes, mesmo quando todos percebemos que, neste momento, a democracia só corre perigo quando não somos capazes de dar respostas colectivas aos problemas de todos, mesmo quando é unânime que tem imperado a sensatez da proporcionalidade na execução das medidas do estado de emergência.

Está nos livros. O distanciamento do poder outrora tido, pode convocar inteligência e arrumação, elegância e desassombro. A entrevista de Ramalho Eanes à RTP é notável pela lucidez da reflexão de um general em tempo de guerra. Um homem-general a caminho das nove décadas, admitindo que afinal "o medo é razoável" e que a humildade é uma virtude que se adquire ao percebermos como somos falíveis e frágeis. "Temos que pensar menos no eu e mais no nós. Repensar as próprias funções do Estado. O Estado não pode ser o Estado mínimo, como se diz: tem que ser o Estado necessário", capaz de olhar "para o futuro da sua comunidade". Nada disto é banda desenhada, embora para alguns ainda seja necessário fazer um desenho.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 3 de abril de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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