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Coronabonds? Já, mas com cuidado

Os coronabonds são necessários e o Conselho Europeu e o BCE não terão alternativa melhor que seja imediatamente viável. Podem fazer deles uma solução ou uma bomba de pavio curto.

Com muitos outros economistas de opiniões variadas, de Mark Blyth a Thomas Piketty ou Jean-Paul Fitoussi e Giovanni Dosi, ou outros colegas portugueses, assinei um apelo para a criação urgente de eurobonds para financiar a recuperação económica e criação de emprego depois da pandemia. Neste artigo dou conta das razões para esta solução de emergência, de alternativas possíveis e dos perigos que estão presentes nas escolhas para a arquitetura desta medida, caso venha a ser criada.

Os eurobonds, ou coronabonds como agora são referidos, são a mais facilmente disponível das várias alternativas para evitar o escalonamento do peso da dívida pública que terá de ser emitida para financiar a recuperação. Mas, se tiverem como contrapartida novas medidas de austeridade, podem tornar-se os coveiros da União. A escolha entre os caminhos da recuperação ou da divisão será a mais importante da história da Europa desde o fim da Guerra.

Uma velha ideia sempre recusada

A primeira proposta de emissão de títulos europeus de dívida terá sido apresentada por Jacques Delors em 1993, era então presidente da Comissão Europeia. A ideia era financiar o orçamento comunitário, usando um instrumento que complementasse as contribuições diretas nacionais e assegurasse a todos os Estados um preço baixo (e igual) desse esforço. A ideia foi rejeitada. É de notar também que Delors liderou a negociação do Tratado de Maastricht, que abriu a via para o euro e que é o primeiro fundamento jurídico invocado pelos opositores aos eurobonds, dado que estabelece uma separação estrita entre a política monetária e a política orçamental. Essa fronteira é o pilar da ortodoxia do euro e os eurobonds desvaneceram-se por muitos anos.

Houve duas décadas depois uma tentativa de relançamento do debate institucional sobre o tema, quando Hollande, então Presidente de França, e Monti, primeiro-ministro de Itália, propuseram essa resposta à crise das dívidas soberanas de 2011. O assunto foi mais uma vez enterrado e as duas razões para a recusa são ilustrativas das dificuldades que a proposta pode vir a enfrentar agora. A primeira é que a Alemanha e os seus satélites beneficiam comparativamente de uma crise financeira e de uma recessão.

De facto, como aconteceu então e está a começar a acontecer agora, num momento de turbulência as emissões de dívida alemã tornam-se um refúgio financeiro e os seus juros descem, enquanto sobem os juros aplicados aos países do sul. Esse movimento de tesoura premeia a Alemanha, significando que os países do sul a estão a financiar. Além disso, segunda razão, maximiza a pressão política para impor medidas de austeridade, como aconteceu entre 2011 e 2013, e estabelece uma hegemonia neoliberal que também reforça a liderança germânica. A diferença de juros, que favorece a Alemanha e penaliza as economias mais frágeis, é-lhe financeiramente vantajosa e é um instrumento invisível de poder absoluto.

Entretanto, os governos alemães fazem as contas e, nisso, não há nenhuma diferença entre Merkel e os social-democratas alemães: eurobonds significa dívida mais barata para os países do sul e um algo mais cara para a Alemanha. Assim, leem essa diferença como uma transferência de fundos entre países, o que consideram inaceitável política e eleitoralmente (além de temerem que a AfD ou partes da CDU ou CSU levem a questão ao Tribunal Constitucional alemão e consigam uma interdição baseada na jurisprudência e na interpretação ortodoxa que sempre foi favorecida no país). Foi por isto que os eurobonds foram sempre recusados.

Todas estas razões se mantêm hoje e não foram alteradas. Só que a pandemia e a recessão que desencadeia atuam como um revelador: o sistema de troca desigual que sempre favoreceu a Alemanha é a prova de que não vivemos numa verdadeira União e, em momentos de crise, a nudez dessa mentira ameaça fazer desabar o seu edifício. O poder alemão e predomínio das políticas neoliberais foi e é um obstáculo a uma União Europeia.

Uma União deveria adotar medidas contra a recessão

Mesmo assim, podia não ter sido tão constrangedor. O improviso e a despreparação de Lagarde e de Von der Leyen na primeira resposta à pandemia ficaram patentes, até mais do que a pessoa mais pessimista poderia temer. No seu momento épico, Lagarde desencadeou um ataque à dívida italiana, logo o epicentro europeu de todos os riscos (a crise sanitária, o risco da dívida pública monumental, o risco político com Salvini à frente das sondagens). Terá pedido desculpa. E, para tentar corrigir a sua primeira atuação, o BCE somou ao programa de 150 mil milhões de euros mais outro de 750 mil milhões. É pouco mais do programa que o governo alemão anunciou para o seu país, o que indica a desproporção e falta de meios. A Comissão anunciou 37 mil milhões, resgatados de programas avulsos, ao mesmo tempo que discute tranquilamente a redução do orçamento comunitário, em particular dos fundos de coesão, para os próximos sete anos.

O problema dos programas anunciados é que se trata de linhas de crédito, o que entrega o poder discricionário de decisão sobre a recuperação de empresas à banca, e de compras de ativos no mercado secundário, medida concebida antes de mais para sustentar as bolsas.

Mesmo que os efeitos de curto prazo nos juros da dívida pública reduzam ligeiramente o impacto imediato sobre as economias mais vulneráveis (os juros da dívida a dez anos de Portugal desceram um pouco depois de uma forte subida, mantendo-se em todo o caso em níveis quatro vezes superiores aos de há duas semanas, e algo semelhante se passa com Itália e Espanha), nenhuma destas medidas responde ao aumento do défice que vai ser necessário na segunda metade de 2020. Ora, Lagarde, como antes já o tinha feito Draghi, alerta para os limites da política monetária expansiva e pede crescimento do esforço orçamental de todos os países. É a voz do desespero. Sabe que o BCE não consegue o efeito pretendido só com mais uma injeção de liquidez financeira, por via do quantitative easing. É preciso um monumental esforço orçamental.

Por isso e desta vez, perante o desastre, a Comissão aceitou suspender a obrigação do limite de défice a 3%. Era indispensável. Os défices serão muito maiores, se houver resposta adequada: o custo de reforçar o sistema de saúde, o pagamento de apoios sociais, os subsídios a empresas e o investimento, ao mesmo tempo que a redução do PIB e das receitas fiscais e contributivas, tudo determinará um défice grande. É o que é necessário. Mas já vimos esta solução na última recessão, não vimos? Em 2009, depois do crash financeiro (o Lehman Brothers faliu em setembro de 2008) e com uma recessão profunda, Merkel e Sarkozy, com a Comissão Europeia, convidaram os países europeus a uma expansão orçamental imediata. Quase todos o fizeram. E depois veio a fatura. Quando se tratou de pagar essas medidas anti-crise, os juros da dívida dispararam e os mesmos que queriam mais despesa agregada impuseram cortes orçamentais duros. Tinha chegado a austeridade.

Fica então o problema principal de cada euro gasto em liquidez para os bancos, subsídios de desemprego, linhas de crédito garantido para PMEs, pagamento de salários pela segurança social ou investimento: como é que os países vão financiar esse défice? Com emissão de dívida. A que preço? É aqui que entrariam os coronabonds.

Oferecer rios de mel?

O BCE e as autoridades europeias poderiam certamente adotar outras medidas. Uma que tem sido proposta é o “dinheiro de helicóptero”, a solução avançada um dia, paradoxalmente, por um liberal de extrema-direita, Milton Friedman, para responder a uma recessão: fazer uma transferência única para cada pessoa, de modo a sustentar a procura agregada. Trump está a fazer isso, pagando 1.200 dólares a cada adulto, visto que se apercebeu tarde mas se assustou com a crítica ao seu desprezo irresponsável e, sobretudo, tem eleições dentro de meses. É um alívio possível para uma emergência, mas tem dois problemas.

O primeiro é que, nas circunstâncias presentes, não basta para resolver as dificuldades essenciais, dado que este não é só um problema de procura, é também uma crise dos sistemas produtivos, que provocará um auge do desemprego e novas quedas do investimento, com o risco de deflação. Um momentâneo empurrão à procura não salva a economia e o emprego.

O segundo problema é mais grave. É o que é colocado pelos defensores do “rendimento básico incondicional”, que tentam relançar agora a sua doutrina, depois de um apagão, sugerindo que tudo se resolve se alguma entidade pagar a cada pessoa um donativo mensal. De facto, a proposta desapareceu do mapa nos últimos anos, dado que a única concretização que reclamava como exemplo era a do Alasca, que distribui rendimentos do petróleo oferecendo 80 dólares por mês a cada pessoa. Ora, nem toda a gente tem petróleo, mas ninguém vive com uma esmola dessas. Assim, a ideia do “rendimento básico” é uma fraude. Promete distribuir dinheiro grátis para permitir a cada pessoa viver confortavelmente, mas os seus promotores recusam-se a dizer quanto e como vão pagar. Por uma boa razão: em Portugal, distribuir 500 euros por mês para cada pessoa custaria mais do que o total das receitas fiscais e, para que essa receita pudesse ser usada para distribuir de tal forma, implicaria despedir todos os médicos, enfermeiros, professores e polícias. Consta que os mais afoitos dos defensores desta ideia tentam salvar-se afirmando que os rios de mel virão do BCE por toda a eternidade.

Soluções consistentes

As soluções mais consistentes para esta crise, são as respostas estruturais às condições de financiamento das dívidas que vão ser contraídas, de modo a tornar possível o esforço orçamental.

A mais imediata seria garantir a compra das emissões de dívida pública de 2020 pelo BCE, até um limite fixado de acordo com a sua chave de capital corrigida pelos montantes dos programas de recuperação económica, ao mesmo tempo que as dívidas soberanas que estão no balanço do BCE seriam convertidas em títulos perpétuos sem juro. Isso seria um canhão poderoso, pois responderia parcialmente ao maior de todos os riscos, impedindo que o financiamento da recuperação dependa dos mercados financeiros. Como se notará, esse risco seria reduzido caso os estados emitissem a sua própria moeda, mas não é hoje o caso.

Dificilmente alguma dessas medidas será adotada. Resta por isso a dos coronabonds, que, em exasperação, tanto Lagarde como Von der Leyen já admitiram. Alguma imprensa internacional sublinhou com entusiasmo que há uns dias Merkel não a rejeitou terminantemente, tendo remetido para um parecer do seu ministro das finanças.

A pressão é grande para uma resposta de monta, e esta é para já a única que está em cima da mesa do Conselho Europeu. É, sobretudo, uma solução alcançável, dado que existem os instrumentos técnicos para a concretizar, através de uma combinação do Mecanismo Europeu de Estabilidade e do Banco Europeu de Investimentos, ou da ação direta do BCE. A vantagem é evidente, dado que baixar os juros das próximas (e importantes) emissões de dívida, reduzindo a pressão dos mercados financeiros, é fundamental para proteger as populações.

Os perigos de coronabonds austeritários

Ficam, no entanto, as duas objeções fundamentais dos fundamentalistas neoliberais, em particular os da Alemanha e Holanda, que recusam transferências entre as economias e não abdicam da pressão para medidas liberalizadoras. E é aqui que estão os riscos mais graves: a Comissão e o BCE podem – e é natural que tentem – obter o acordo dos falcões com uma contrapartida, que seria uma nova geração de programas de austeridade. Por isso, já se fala de uma solução especial, algo diferente da dos eurobonds, que conseguiria recursos que os estados possam usar para o esforço orçamental sob a forma de programas de empréstimo para as economias. Assim, não recorreriam a emissão nos mercados financeiros mas, em troca desse crédito, submeter-se-iam a medidas de “ajustamento”. As troikas espreitam de novo na esquina da pandemia.

Se lermos os relatórios dos últimos anos das instituições europeias, mas também das mundiais, como o FMI ou a OCDE, os contornos desses programas são fáceis de adivinhar. Tratar-se-ia de avançar e concluir os processos de liberalização, com a transformação do emprego, o que hoje se chama uberização e antes se dizia precarização, quando ainda não tínhamos chegado a tempos tão radicais. Nesse mapa ideológico, reduzir estruturalmente o salário (ou as pensões) não constitui um problema do lado da procura desde que o autoritarismo social permita impor generosas transferências de impostos, sob a forma de rendas, para os poderes financeiros.

O problema é que estes programas não são fáceis de enunciar ou de aplicar. Eles sempre implicaram reduzir os serviços públicos para mercantilizar uma parte crescente dos bens comuns, em particular na saúde, educação e segurança social. Ora, a crise que vivemos é uma pandemia que revela o custo do pirateamento dos serviços de saúde ao longo da última década. Mesmo com esses cortes, os serviços públicos de saúde são, nesta crise, a única âncora que garante segurança às populações. Propor de novo a sua privatização é algo que para já só é ousado por um Ventura, mas era o caminho que se estava a seguir. É por isso de antecipar que, se os partidos do centro ou da direita clássica ousarem promover uma nova vaga de austeridade e de redução da saúde ou do ensino públicos, vão acelerar os processos de desagregação que prometem evitar.

Não é só um problema do euro, que não sobreviveria a uma saída da Itália. O governo francês parece ser o único a dar-se conta da tempestade perfeita que está a ser criada por uma liderança europeia que ignorou os pedidos de apoio das autoridades italianas e se poderia atrever a usar as novas regras para amesquinhar o país. A União Europeia que conhecemos também dificilmente resistiria a uma resposta à pandemia que promova o desastre social. Por isso, os coronabonds são necessários e o Conselho Europeu e o BCE não terão alternativa melhor que seja imediatamente viável. Podem fazer deles uma solução ou uma bomba de pavio curto.

Artigo publicado em expresso.pt a 24 de março de 2020

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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