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E as famílias, pá?

O panorama em junho pode ser imprevisivelmente desolador: pequenos comércios que não voltam a abrir, milhares de desempregados, centenas de milhares de créditos incumpridos, insolvências, despejos, famílias destroçadas, vidas arruinadas.

Costa não está a ver o filme todo. Não está ou não quer. Milhares de famílias enviadas inevitavelmente para casa podem chegar a junho – data apontada pelo Governo para a retoma da economia – sem empregos nem rendimentos, com as vidas arrasadas e inevitavelmente destruídas.

Funcionários de micro e médias empresas, pequenos empresários, comerciantes, trabalhadores independentes, os mais vulneráveis entre os vulneráveis, exigiam um verdadeiro plano de intervenção e que o Estado fizesse de Estado nesta altura de carência ímpar.

E o que faz Costa? Manda os pais e mães para casa com dois terços do vencimento base, sabendo que muitos auferem ou declaram o ordenado mínimo ou pouco mais. Retira este apoio, já de si tão insuficiente, durante as férias escolares da Páscoa, esquecendo que não existem alternativas para deixar os filhos nesse período. E ainda determina que um casal onde o pai ou a mãe esteja em teletrabalho não possa beneficiar desta parca ajuda. Mau demais.

Aos pequenos empresários, muitos deles já endividados, é-lhes pedido que recorram à banca para manter os negócios, esquecendo que, mesmo com períodos de carência e juros baixos, esse dinheiro terá de ser pago mais tarde. Dívida em cima de dívida. Os bancos, esses que tantas e tantas vezes tivemos de resgatar, esfregam as mãos com a perspetiva de novos lucros.

As crianças são enviadas para casa e entupidas com fichas, trabalhos, projetos e sabe-se lá mais o quê, esquecendo que um em cada cinco estudantes não tem computador nem acesso à Internet e mandando às malvas a equidade e a igualdade de oportunidades, a sacrossanta meritocracia.

Mudar o “mind-set”

Vivemos tempos excecionais, mas Costa não consegue mudar o paradigma. Solicita, pede, pedincha, aqui e ali, suplica flexibilidade, procurando a boa vontade do setor bancário, das operadoras de comunicações, dos hospitais privados ou dos grandes retalhistas, a quem saiu “a sorte grande”. Esquecendo que numa crise desta dimensão há sempre quem encontre uma gigantesca “janela de oportunidade”.

Entretanto, em Itália, o governo proíbe despedimentos e isenta empresas e famílias do pagamento de prestações bancárias. Em França, é suspensa a cobrança de faturas de água, luz e gás e, em Espanha, o executivo decreta que quem for despedido e não tenha o tempo mínimo de trabalho remunerado, pode aceder igualmente ao subsídio de desemprego.

O panorama em junho pode ser imprevisivelmente desolador: pequenos comércios que não voltam a abrir, milhares de desempregados, centenas de milhares de créditos incumpridos, insolvências, despejos, famílias destroçadas, vidas arruinadas.

Para atenuar os efeitos desta previsível calamidade, urge tomar medidas corajosas, muitas eventualmente inéditas, pensar nas pessoas, nas famílias, nas pequenas empresas, na comunidade. Como se apregoa na gíria empresarial da moda, “mudar o mind-set”, alterar o prisma de atuação.

Medidas como suspender o pagamento de créditos – de famílias e pequenas empresas -, sem acumular juros nem comprometer a retoma da vida “normal”. Medidas como suspender o pagamento de água, luz e gás durante os meses do isolamento social – em que as contas irão aumentar exponencialmente por via do teletrabalho -, sem depois obrigar ao pagamento de faturas em cima de faturas. Ou, porque não, adiantar o reembolso do IRS.

Medidas como adiar, reduzir e flexibilizar o pagamento de impostos – IRS, IRC, IVA, IMI – e contribuições para a Segurança Social. Quem pouco ou nada recebe, pouco ou nada pode pagar. Chegou a vez de pensar nas pessoas e de governar para a comunidade. Ou pode não restar boa parte dela quando a vida regressar à “normalidade”.

E o “mercado”, não faz a sua parte?

Ainda não vimos Costa chamar “o mercado” para fazer a sua parte: do retalho em altíssima rotação à indústria farmacêutica com lucros milionários, dos gigantes da energia às multinacionais das comunicações, tudo empresas que irão rever em alta os resultados do ano fiscal.

Basta atentar na notícia recente de que os laboratórios privados estarão a faturar 2,6 milhões de euros por dia em testes ao Covid-19. E que boa parte desses testes são fruto de protocolos com o Governo e as autarquias, portanto pagos por todos nós. Basta perspetivar o “natal antecipado” das grandes cadeias de distribuição, cujas prateleiras vazias fazem prever um trimestre de bolsos avolumados para os respetivos stakeholders.

Ainda não ouvimos falar em adiamento ou renegociação do chamado “serviço da dívida”, que leva do Estado todos os anos mais do que o orçamento da Saúde. E nem uma palavra quanto a nacionalizações de setores estratégicos, esse grande tabu do qual quase todos os comentadores de serviço fugiam como o diabo da cruz.

Ainda não ouvimos uma verdadeira estratégia europeia concertada, virada para o bem comum, com medidas conjuntas, proporcionais, adaptadas a cada caso concreto. Uma estratégia que pense nas famílias em detrimento dos grandes interesses do establishment.

Há muito por onde puxar, muitos favores para cobrar e é grande o “mercado” que pode contribuir. Mas, está quase tudo por fazer. Haverá coragem?

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Jornalista
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