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O medo é democrático

A ressurreição de Joe Biden como alternativa a Donald Trump baseia-se no medo. Não estamos no território da desinformação, do triunfo das fake news ou da interferência russa.

Aqui, o medo é democrático. No limite do desaparecimento após a votação decepcionante obtida em Iowa, New Hampshire e Nevada, Biden transforma-se de candidato-fantasma a favorito à vitória nas primárias democráticas para a corrida à Casa Branca. Para trás e apesar da vitória na Califórnia, parece ficar a dimensão da campanha de Bernie Sanders que, em crescendo durante a presidência republicana, permitiu a normalização da palavra "socialismo" nos EUA e alimentou a esperança de compromisso por uma luta frontal contra as políticas dos últimos quatro anos de "trumpismo". O Partido Democrata é uma estrutura conservadora que tem muito mais medo da eventual disrupção de Sanders do que da manifesta perigosidade de Trump.

A "Super tuesday" foi ganha por Trump: dificilmente pode vir a ser derrotado por um candidato de meias-tintas. Ficou muito claro como o principal objectivo do Partido Democrata é o de parar Bernie Sanders. Vemos as mesmas reações e sinais de omissão quando candidatos como Pete Buttigiege ou Amy Klobuchar desistem um dia antes da ida às urnas para apelar ao voto em Joe Biden. Exactamente os mesmos erros cometidos para eleger Hillary Clinton em 2016, com os resultados desastrosos que sabemos. Biden representou o compromisso que Obama foi obrigado a criar para ser eleito e reproduz, agora, as políticas de entendimento com o sistema de que Trump se alimentará para assegurar a reeleição.

A forma como Trump está a lidar com a epidemia do coronavírus, diz bem sobre a persistência na sua metodologia. Nem Descartes, nem Stanislavski. O discurso do método de Trump é um "software" de negação científica. Com a morte de 11 norte-americanos às mãos do vírus, a nomeação do vice-presidente Mike Pence para a coordenação da equipa de emergência do Covid-19 nos EUA é um sinal alarmante face ao seu cadastro. Um incendiário ao comando do departamento de fogos, dizem. Responsável, enquanto governador de Indiana, por criar obstáculos no seu estado ao combate do histórico surto de HIV em 2015, Pence é também o autor de uma das frases que a saúde pública norte-americana não esquece: "smoking doesn´t kill" ("fumar não mata"). Mas há imagens que sim, matam. Sobre o confronto com a fé. O registo fotográfico de uma reunião do gabinete de emergência do coronavírus dá conta da forma como todos os seus elementos rezam em grupo para que a epidemia não alastre no território. Rezar por uma solução, tal e qual o que Mike Pence defendia nos piores momentos da crise de HIV em Indiana, quando assegurava que "ia para casa rezar". O medo também se alimenta disto.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 6 de março de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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