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Porto de Lisboa: o tempo está a contar
Em 2018, na sequência de um processo de luta, que aliás aconteceu também em Setúbal, os patrões da estiva acordaram em dar aos estivadores um aumento de 4%. Nunca cumpriram, mesmo tendo cobrado mais aos seus clientes com o argumento de que iriam pagar mais aos trabalhadores. Agora, decidiram atirar fogo à muralha: não só não cumprem o que acordaram como propõem reduzir em 15% os salários (que não têm qualquer atualização desde 2010) e que os 34 estivadores com quem, desde 2016, foram assinados contratos sem termo, regressem agora à situação de trabalhadores precários eventuais.
Esta imprudente provocação lançada contra os estivadores tem um objetivo estratégico: acabar com a Associação-Empresa de Trabalho Portuário de Lisboa (A-ETPL), reprecarizar todo o porto e desarticular as formas de representação coletiva da classe. Mas é um jogo arriscado e muito perigoso, por várias razões.
A primeira razão é porque o verdadeiro propósito das empresas está demasiado à vista.
Há cerca de 150 estivadores que têm contrato efetivo com a AETPL, que é a empresa que fornece trabalhadores em Lisboa. As 7 empresas que operam no porto pagam à AETPL pelo trabalho dos estivadores. Mas são essas mesmas empresas que são proprietárias da AETPL. Como proprietárias da AETPL, nunca quiseram atualizar o tarifário pago pelos clientes, que permanece congelado há mais de duas décadas. Ou seja, as mesmas empresas que são proprietárias da AETPL e suas clientes querem agora destruir a AETPL e anunciam o desejo de insolvência dessa empresa. É no mínimo estranho. Ou não. Na realidade, as empresas que operam no porto, e em particular o grupo turco Yilport, quer rebentar com a AETPL não porque vá deixar de precisar de estivadores, mas porque esta tem trabalhadores com direitos e sindicalizados. É preciso rebentar com o que existe para abrir uma empresa ao lado com precários baratos e submissos.
A segunda razão é porque a fraude também está demasiado à vista.
Empresas que são clientes atuam, como proprietárias, de modo a colocar em dificuldades a empresa de que são donas. O que é isto se não uma gestão danosa? Mas mais do que isso: o grupo Yilport, que se autoriza, enquanto proprietário da empresa de trabalho portuário, a pagar enquanto cliente abaixo de custo, é o mesmo que já manifestou ter 122 milhões de euros para o porto. Ou seja, ao mesmo tempo que atrasa salários e propõe reduzi-los, anuncia ao Governo ter uma disponibilidade de 122 milhões de euros para investir no Terminal de Contentores de Alcântara, agora que decorrem negociações para a prorrogação do prazo de concessão desse terminal portuário. Como é que a mesma empresa não tem dinheiro para pagar salários (deixando os homens do porto a viver com 390€ desde o início do ano) mas acena com milhões ao Governo?
A terceira razão pela qual este jogo das empresas é arriscado é porque ele é totalmente irresponsável.
Os estivadores têm sido um dos setores que mais determinadamente tem combatido a precariedade. O seu sindicato nacional, o SEAL, é um exemplo na capacidade de criar mecanismos de solidariedade entre trabalhadores históricos (mais antigos) e precários (mais novos). Além disso, tem revelado uma notável capacidade de aguentar processos de luta longos e de ativar solidariedades noutros portos nacionais e internacionais, bem como noutros setores. A provocação das empresas, que querem despedir 150 estivadores em Alcântara para depois contratar precários, não vai ficar sem resposta. Em Lisboa, a greve dos estivadores tem tido, desde que se iniciou, 100% de adesão. Hoje mesmo [sexta-feira, 28 de fevereiro], os estivadores do porto de Setúbal avançaram para uma greve em solidariedade com os de Lisboa. E o Conselho Internacional de Trabalhadores Portuários, que representa cerca de 140 mil estivadores, já veio condenar o “assédio brutal” vivido em Lisboa e ameaçar com ações de solidariedade em todo o mundo. Quem achar que vai dobrar os estivadores apostando na sua divisão está, objetivamente, a fazer um erro de cálculo.
É aqui que entra o Governo.
O Estado é o proprietário dos portos e é quem tutela a sua concessão. É pois impossível o Governo fugir a este conflito ou fingir que não tem um papel determinante nele. Em primeiro lugar, porque lhe cabe exigir que a lei é cumprida e impedir esquemas fraudulentos numa concessão do Estado. Em segundo lugar, porque o acordo assinado em 2018 foi publicamente celebrado pelo Governo como uma vitória. Por isso, quando as empresas o rasgam à frente de todos, não dá para fingir que não vê. Em terceiro lugar, o Governo deve intervir por razões laborais e para evitar uma escalada do conflito com efeitos imprevisíveis. Por mais que a Yilport acene ao Ministro com 122 milhões de investimento, cabe-lhe dar o país ao respeito. Nenhum futuro se constrói sobre terra queimada e talvez seja bom explicar ao grupo turco que, se a sua estratégia é incendiar o setor portuário em Portugal e esmagar quem nele trabalha, para depois se instalar sobre as ruínas que criou, não é bem vindo e que, cá, as coisas não funcionam assim.
O tempo está a contar.
Artigo publicado em expresso.pt a 28 de fevereiro de 2020
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