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Violência obstétrica: o caso português

Em Portugal, um dos países europeus com taxas de intervenções no parto mais altas, o desrespeito pelas mulheres no contexto da assistência obstétrica reveste-se de muitas formas - das mais óbvias, como o abuso verbal, às mais subtis, como a privação de informação acerca do estado de saúde, passando pelos entraves à presença  de um acompanhante da escolha da mulher durante o trabalho de parto e o parto. Nas suas múltiplas dimensões, a violência obstétrica traduz-se na perda de autonomia das mulheres num momento de importância crucial das suas vidas sendo, por isso, necessário contribuir para a visibilização deste fenómeno e para o reconhecimento dos direitos das mulheres no contexto da gravidez e do parto. Artigo de Catarina Barata e Dulce Morgado Neves (Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto).
Grávida no corredor das urgências da Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa.
Grávida no corredor das urgências da Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa. Foto de Mário Cruz/Lusa.

O reconhecimento da prevalência de diversas formas de desrespeito e abuso durante a gravidez, parto e pós-parto, ou violência obstétrica, tem sido alvo de crescente atenção nos círculos de ativismo dos direitos reprodutivos da mulher e nas agendas de organizações internacionais. O tema foi recentemente abordado na Assembleia Geral das Nações Unidas[1] e no Conselho da Europa[2].

Nos países em que a violência obstétrica está consagrada na legislação enquanto violação de direitos humanos, a definição de violência obstétrica refere-se à “apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por parte dos profissionais de saúde, que se expressa num trato desumanizador, em abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, trazendo consigo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre os seus corpos e a sua sexualidade, com um impacto negativo na qualidade de vida das mulheres.”[3]

Estes maus-tratos em contexto de assistência obstétrica podem revestir-se de muitas formas, das mais óbvias, como a agressão verbal, às mais subtis, como a privação da informação relativamente ao estado de saúde e a intervenções médicas, de modo a que a mulher possa decidir conscientemente acerca do rumo do seu próprio parto.

Não havendo um enquadramento legal específico da violência obstétrica no nosso país, quando judicializadas, as situações de violência obstétrica são geralmente tratadas como casos de negligência médica

Uma revisão sistemática acerca do tema[4] estabelece uma tipologia da violência obstétrica dividida em sete âmbitos: 1) abusos físicos, 2) abusos sexuais, 3) abusos verbais, 4) estigmatização e discriminação baseada em características sociodemográficas, 5) incumprimento dos padrões profissionais de cuidados, 6) relação deficiente entre a mulher e os prestadores de cuidados, 7) condições e constrangimentos do sistema de saúde.

Em termos legais, em Portugal, a violência obstétrica é um fenómeno praticamente invisível. Não havendo um enquadramento legal específico da violência obstétrica no nosso país, quando judicializadas, as situações de violência obstétrica são geralmente tratadas como casos de negligência médica, não contribuindo nem para o reconhecimento social do carácter estrutural da violência obstétrica enquanto violência de género nem para a compreensão da real extensão deste fenómeno.

Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na gravidez, parto e pós-parto são protegidos em Portugal pela Lei 15/2014[5], a qual concede às mulheres direito a um acompanhante durante o trabalho de parto e parto, direito a cuidados de assistência adequados, direito a um tratamento humano e respeitador, direito à informação e ao consentimento informado e direito à privacidade e confidencialidade, entre outros. No entanto, apesar da consagração explícita dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no contexto da gravidez, parto e pós-parto, a realidade revela lacunas importantes no cumprimento de tais objetivos.

Para começar, Portugal tem das mais altas taxas de intervenção no parto da Europa, o que no consenso científico reflete um baixo nível de qualidade na assistência obstétrica[6]. As elevadas taxas de episiotomia (corte na vagina para alargar o canal de parto) e cesariana (cirurgia para retirar o bebé através de incisão na barriga da mãe) são disso exemplo. Outros dados não estão quantificados, como as taxas de indução de parto ou a manobra de Kristeller (aplicação de pressão externa no fundo do útero), mas sabemos que são amplamente utilizados. A manobra de Kristeller é há anos desaconselhada nas orientações clínicas[7], assim como a episiotomia[8], a que alguns chamam a “mutilação genital feminina do ocidente” e que no nosso país tem uma taxa de 73%, enquanto noutros países europeus se fica pelos 5%. Acresce que para além de desaconselhadas, tais práticas são, por vezes, realizadas sem o consentimento ou até contra a vontade explícita das parturientes, facto que, em 2015, terá motivado a elaboração de recomendações com carácter de urgência por parte do Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)[9] ao governo português.

As reivindicações dos direitos na gravidez e no parto e a denúncia de situações e fenómenos de desrespeito ou de violência obstétrica não são alheias à iniciativa da sociedade civil. A Petição pelo fim da Violência Obstétrica nos blocos de parto dos hospitais portugueses, discutida em Assembleia da República em 2019, rapidamente atingiu 7 697 assinaturas[10]. O Inquérito “Experiências de Parto em Portugal”, promovido pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP)[11], veio trazer à luz dados inquietantes acerca de algumas práticas prevalecentes no contexto de assistência obstétrica em Portugal: as práticas generalizadas de privação da mulher da ingestão de alimentos ou líquidos, de se mover livremente durante o trabalho de parto ou de

Portugal tem das mais altas taxas de intervenção no parto da Europa, o que no consenso científico reflete um baixo nível de qualidade na assistência obstétrica

escolher a posição do parto, a falta de informação e consentimento acerca das intervenções (desde a indução mecânica aquando do “toque” à administração de fármacos para aceleração do trabalho e parto), assim como a privação de acompanhante são queixas comuns. O abuso de intervenções médicas, muitas vezes sem justificação clínica, constitui uma das principais manifestações de violência obstétrica, a par do tratamento rude e da privação de acompanhamento. Para além disso, a infantilização dos usuários não é um problema exclusivo da obstetrícia, mas sendo a gravidez e o parto um momento de especial vulnerabilidade para as mulheres e as famílias, os maus-tratos no contexto da assistência obstétrica deixam marcas para a vida, com consequências em vários quadrantes.

Como agravante, a não divulgação de alguns indicadores contribui para a falta de transparência do sistema e dificulta a avaliação do estado e qualidade dos cuidados em obstetrícia no nosso país. Da mesma forma, a ausência de instrumentos de avaliação qualitativa de satisfação das mulheres com os seus partos deixa de fora uma dimensão fundamental deste evento e é revelador de como a centralidade da mulher no processo de gestação e parturição não é ainda uma realidade no nosso país.

Alguns avanços políticos e legislativos foram sendo feitos, sendo disso exemplo a recente iniciativa legislativa aprovada na Assembleia da República (Lei 110/2019[12]), que teve como objetivo fortalecer os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e contribuir para a melhoria dos cuidados de saúde materno-infantil. Ainda assim, muito há a fazer contra a normalização, institucionalização e invisibilidade da violência obstétrica. Para que os cuidados dignos e respeitosos sejam a norma, é necessária uma mudança de paradigma na assistência obstétrica em Portugal: um paradigma regido pela melhor evidência científica e que coloque a mulher no centro dos cuidados, reconhecendo a importância da experiência reprodutiva de cada uma e defendendo o direito à autonomia e autodeterminação das pessoas.


Dulce Morgado Neves é doutorada em sociologia e desenvolve uma pesquisa sobre feminismo e maternidade em Portugal e Espanha. É ativista na Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto.
Catarina Barata é doutoranda e desenvolve um projeto de investigação sobre violência obstétrica no âmbito do doutoramento em Antropologia. É ativista na Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto. 

A produção deste artigo foi feita com recurso a documentação da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, bem como com contributos de outrxs companheirxs da associação.


Notas

(...)

Neste dossier:

Esther Vivas é socióloga e jornalista. Em Mama Desobediente procura "politizar a maternidade".

"A esquerda não foi capaz de elaborar um discurso próprio sobre a maternidade"

"A maternidade foi sempre um tema incómodo para o feminismo". Em entrevista, Esther Vivas explica as razões pelas quais as feministas dos anos 60 e 70 caíram "num certo discurso anti-materno e anti-reprodutivo como reação à imposição do patriarcado  para que as mulheres exerçam a experiência materna". No seu último livro, afirma a mãe como "sujeito ativo, com capacidade de tomar decisões, que se reconcilia com o próprio corpo, fortalecendo-se na gravidez, parto e amamentação".

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