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Morte assistida, uma questão de dignidade

Não está em causa nenhum juízo de valor sobre uma série de opções que se colocam em diversas situações, mas sim a soberania de quem está próximo do fim e que deve ter direito à escolha.

Os que se opõem à morte assistida balizam os seus argumentos em três ordens de razão: o debate não teria sido suficiente; a Constituição inviabilizaria esta opção; e os valores religiosos não a permitem.

No que respeita ao primeiro argumento, há que ter presente que o debate sobre a morte assistida não é de hoje. Desde 2018 que a despenalização da morte assistida foi equacionada e debatida no Parlamento, pelo que quem argumenta que não houve reflexão suficiente mascara a realidade.

Já no que concerne ao texto constitucional, os que argumentam que este consagra o direito à vida omitem que o mesmo não prescreve a penalização de quem, perante um sofrimento atroz, responder a um apelo de morte assistida com a dignidade que a pessoa escolheu.

Quanto aos ditames religiosos, há que ter sempre presente que o Estado português é laico, não podendo impor qualquer religião, nem basear as suas decisões em doutrinas religiosas.

Entretanto, é importante ter presente que, em Portugal, hoje já é possível alguém recusar cuidados que prolongam uma vida que “já não o é”. Mas, suprema hipocrisia, impede-se as pessoas de pôr fim à sua agonia e criminaliza-se quem as ajudar.

Direito à escolha

Há dois anos, acompanhei o último mês de vida da minha mãe que faleceu, no dia 31 de janeiro, vítima de cancro no pâncreas. Soubemos do diagnóstico dois meses antes. A médica que a acompanhava foi muito objetiva, se continuasse no hospital, era para morrer ali. Desde o internamento, ela transmitiu-nos que não queria tomar conhecimento da doença que a afetava. Respeitámos a sua opção.

Decidimos que, nessas condições, a opção era ocultar o diagnóstico e proporcionar a morte, em casa, com cuidados paliativos. Assim foi. Seguiu-se um período em que não tinha consciência de que se encontrava na antecâmara da morte. Os médicos e técnicos de enfermagem estavam alertados para a situação. Foi-lhe administrada morfina, sem que o soubesse.

A nossa mãe estava a viver em casa da minha irmã em São Luís, concelho de Odemira. Deslocávamo-nos em ambulância para o hospital de Odemira, unidade de Cuidados Paliativos sem que ela se apercebesse de que se aproximava o fim. A Unidade foi incansável. Foi-nos dado apoio logístico e psicológico. Felizmente, tivemos condições para manter a nossa mãe connosco até ao último dia. Proporcionámos oxigénio, ventilação, higiene, e deslocações em casa entre a cama e a sala, com cadeira de rodas e andarilho. Uma enfermeira, muito solícita e terna, dava-lhe apoio. Julgo que a maior parte das pessoas não tem essas condições. Na vida como na morte, o extrato económico e social e o suporte familiar pesam! Apesar disso, houve muitos momentos dolorosos que nos marcaram.

Nas últimas semanas pedia-nos (aos filhos) que nos sentássemos junto dela e lhe déssemos a mão. Já não era a pessoa com quem vivemos dezenas de anos. A dor e a ausência eram cada vez mais presentes. Num dos momentos mais dolorosos disse-me ”eu vou morrer” ao que respondi que toda/os nós íamos morrer um dia. Claro que não a sosseguei. Apesar da morfina, de outros analgésicos e das condições que lhe proporcionávamos, eu sentia a angústia que a atravessava…

O médico que a acompanhou nos paliativos alertou-nos para as diversas fases do processo e aconselhou-nos a que, quando a morte estivesse iminente, e tivéssemos que chamar o INEM, alertássemos que não queríamos manobras de reanimação. Assim fizemos. No dia 30 de janeiro, a minha mãe entrou em absoluta agonia. Chamámos o INEM, a quem transmitimos essa indicação. Contudo, os técnicos de saúde disseram-nos que eram obrigados a proceder a manobras de reanimação sob pena de terem graves problemas profissionais. A caminho do hospital de Odemira, a ambulância parou e nós que seguíamos atrás também. Suspeitámos que o pior se passava lá dentro. Foi reanimada e sofreu mais umas horas de agonia. Veio a falecer na madrugada de dia 31 de janeiro. Entre momentos de inconsciência e alguns de puro pânico.

Decidir na vida e na morte. Uma questão de soberania

A minha mãe teve a possibilidade de partir como queria, apesar do sofrimento. Gostaria que toda/os nós o pudéssemos fazer, que pudéssemos ser soberana/os relativamente à nossa vida e à nossa morte. Tendo, inclusive, apoio para partir quando a agonia se torna insuportável. Se fosse comigo, gostaria de ter tido conhecimento da doença terminal que minava o meu corpo, do processo inerente e de ter a possibilidade de escolha quando entendesse que tinha chegado a altura de pôr fim ao sofrimento.

Hoje, em plena posse das minhas faculdades, sei que é assim que gostaria que as coisas se processassem. Como escreveu o médico Bruno Maia, ”O sofrimento não é apenas dor, é também a degradação de um corpo que definha, que deixa de poder executar as mais rotineiras e simples das atividades do dia-a-dia, é a perda da autonomia, a dependência de terceiros e a destruição da nossa auto-imagem corporal”.

Não está em causa nenhum juízo de valor sobre uma série de opções que se colocam em diversas situações, mas sim a soberania de quem está próximo do fim e que deve ter direito à escolha. A antecipação da morte não foi a opção da minha mãe, até porque ela optou por não ser confrontada com o seu prognóstico. Mas, se tivesse sido, só tínhamos que a respeitar e ajudá-la na sua concretização. Trata-se de uma questão de soberania, na vida e na morte!

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Professora.
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