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A palavra é sofrimento

Uma síntese do que se escreveu quando já nada mais há a dizer. Morrer não é só uma fatalidade quando morrer é quase uma obrigação. É dignidade pelo livre arbítrio e pela escolha individual, o fim de um sofrimento atroz.

Ainda hoje há quem considere leal viver um simulacro da vida pelos olhos dos outros, pelo desígnio de nos manterem vivos à custa da tormenta. Por acharem que é justo, decente ou imperativo em razão da sua moral, visão, religião ou vontade. É por aqui que nos ficamos, tantas vezes. Um ser piedoso como um verbo de encher.

Falhamos redondamente em humanidade se não nos derem o direito de sobreviver a nós mesmos. Ninguém pode decidir se um sofrimento terminal é ou não legítimo. Ninguém se pode arrogar do espaço de liberdade final de alguém em nome da perpetuação da vida, para além da vontade quando se sofre tremendamente. Impedir a agonia é intimidade e é intransmissível. É nome maior, glorificação do mais basilar princípio da democracia: decidir em liberdade quando só nós estamos em causa.

Lembrando o processo da despenalização do aborto em Portugal, somos por vezes um país que prefere atrasar-se uma década ou mais quando legisla sobre realidade. A dignidade e elevação geral do debate parlamentar de 2018 sobre a morte assistida criou condições para enterrar de vez o alarme social de frases assassinas como "por favor não matem os velhinhos", "eutanásia? Não mates, cuida" ou do "eu não quero morrer, será que me vão eutanasiar?" Esta contrainformação, espúria manipulação da miséria humana, criando cinicamente a confusão sobre a possibilidade de um Estado-matador que espreita às portas da doença, é ofensiva e inclassificável. Então porque insistem?

Há quem queira levar a referendo um sofrimento inatacável. Que não se combate, não se desloca para sinais intermitentes ou zonas de maior conforto. Está para além da bondade caridosa ou da complacência. Em última análise, falamos de amor e de dignidade que não se entrega às mãos de ditames da fé ou da sua ausência. E aí os vemos, ímpios da consciência alheia a agitar a bandeira da liberalização da morte para diabolizar a eutanásia. Tamanha dissimulação. Ousam falar da obrigação societária de cuidar até ao último sopro de vida quando sempre menosprezaram o estatuto dos cuidadores informais e o reforço dos cuidados paliativos. Apenas um álibi para minar o debate e as decisões sobre a morte assistida. Adiar ou referendar em nome de quem? Apenas da hipocrisia e a sua própria moral em autogestão.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 14 de fevereiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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