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Eutanásia, direito a morrer com dignidade

Se alguma coisa mudou não foi a qualidade do debate sobre a morte assistida, foi apenas o oportunismo político de alguns.

“Sou uma cabeça sem corpo”. Assim se resumia Ramón Sampedro, que em 1968 ficou tetraplégico na sequência de um mergulho na praia. A luta de Ramón Sampedro pelo direito a terminar a sua vida durou mais de três décadas e não deixou ninguém indiferente, ficando eternizada pela mão de Alejandro Amenábar no formidável filme Mar Adentro. Essa luta é um bom ponto de partida para o debate que está instalado em Portugal.

O debate sobre a morte assistida não é sobre as formas mais dignas de enfrentar a morte. Essa dignidade não se afere pela bitola com que outros medem as nossas escolhas, mas sim pela consciência de cada um perante a sua condição. E não obedece a hierarquias de uma doutrina, de uma crença religiosa ou mesmo de uma ideologia. Por isso mesmo, não deve a lei impor uma moral sobre o fim da vida, nem os direitos podem cessar no limiar da morte.

O debate também não é para colocar os cuidados paliativos em contraponto com a possibilidade da morte assistida. Não há um modelo contra o outro porque ambos radicam em direitos que devem ser garantidos. A Bélgica, por exemplo, é a prova como se complementam estes direitos.

O debate não é como o Estado se deve imiscuir na vida das pessoas, bem pelo contrário. Em qualquer das propostas que irão a discussão no Parlamento, o Estado não se substitui à escolha de ninguém. A decisão é apenas e só da pessoa e é revogável a todo o tempo. O Estado não impõe o modelo de fim de vida, antes garante a liberdade para uma decisão individual, porventura a maior decisão de todas. Esse Estado opressor é o que hoje existe, nega a dignidade que as pessoas reconhecem para si e impõe qual a dignidade que as pessoas devem ter para usufruir.

O debate não é sobre a liberalização da eutanásia. As propostas que serão debatidas excecionam da criminalização da morte assistida uma condição específica, em que uma pessoa lúcida e consciente sofre de uma lesão definitiva ou doença incurável e fatal, está em sofrimento continuado e tem todas estas condições atestadas por profissionais médicos. Estes profissionais, aliás, têm a obrigação de prestar toda a informação ao doente sobre os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos cuidados paliativos, e o respetivo prognóstico e assegurar que a decisão do doente é livre e não resulta de qualquer interferência ou coação externa e ilegítima.

A “rampa deslizante” de que alguns falam é a campanha do medo, requentada e batida, que já foi utilizada no debate da estratégia para a toxicodependência e da interrupção voluntária da gravidez. As previsões dantescas foram todas erradas e a realidade mostra em cada um dos casos o oposto do que tinha sido vaticinado. Ambos são casos de sucesso internacionalmente reconhecidos. Essa campanha já não apanha ninguém de surpresa.

O debate também não começou agora. Há mais de 20 anos que este tema tem sido discutido no país. Mas, em particular desde 2017, assistimos a um debate transversal na sociedade e no Parlamento, onde foram votadas várias iniciativas em 2018. Aliás, nesse período o sr. Presidente da República apadrinhou o ciclo de debates promovido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que correu o país durante mais de um ano e concluiu que foi “um debate muito participado por todos os quadrantes político-partidários, religiosos e sociais”.

Mesmo Pedro Passos Coelho, que agora vem falar da “ligeireza” e leviandade “como a esquerda entende legislar”, escrevia há menos de dois anos que “ninguém pode dizer que se trata de uma surpresa, nem de uma iniciativa pouco ponderada. Todos tiveram assim tempo suficiente para fazer o debate e a reflexão necessária à assunção de uma decisão nesta matéria”. Se alguma coisa mudou não foi a qualidade do debate sobre a morte assistida, que tem sido elevado e participado, foi apenas o oportunismo político de alguns, que até usam referendos como manobras dilatórias.

O debate é sobre compaixão, sobre humanidade e resume-se nas palavras de José Saramago: “Ninguém tem o direito de dizer a uma pessoa quer sair da vida ‘Pois não! Você vai ficar aí, ligado a uma data de tubos, a uma data de máquinas’. Só para que não se diga que o matámos?” O debate é sobre respeitarmos quem nos diz: Por favor, ajudem-me.

Artigo publicado no jornal “Público” a 14 de fevereiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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