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A autossuficiência do Governo minoritário do PS

Graças a uma decisão do Governo PSD/CDS durante a troika (que teve a oposição do PS), a taxa de IVA sobre a eletricidade é a mesma que se paga pelo caviar, 23%.Ou seja, a política fiscal do Estado considera que a eletricidade é um bem de luxo.

Em Portugal morre-se de frio no inverno, e isto é um facto. Estima-se que, em 2018, a gripe e as baixas temperaturas tenham causado cerca de 3700 mortes, das quais 397 atribuíveis ao frio. Mas no verão também se morre de calor. A última grande onda de calor, em 2003, provocou quase 1700 mortos.

Num país que não consegue proteger a sua população nem do frio nem do calor, não é abusivo afirmar que, na verdade, se morre de pobreza energética. Não sabemos ao certo qual é o nível de mortalidade provocado por este flagelo, mas é certamente superior a alguns vírus que mobilizam – e ainda bem – soluções muito mais eficazes.

Só que esta infelicidade não afeta todos por igual. Há 19% da população portuguesa que está particularmente vulnerável porque não tem condições financeiras para aquecer a casa no inverno, mantê-la fresca no verão ou adequadamente iluminada e em condições de salubridade. Porquê? Porque, tendo dos salários mais baixos da Europa, Portugal tem a eletricidade mais cara tendo em conta o poder de compra.

Há várias razões para termos uma fatura da eletricidade tão cara e o Bloco tem tentado acabar com todas. Uma delas chama-se rendas da energia, uma renda de privilégio que todos pagamos para garantir os lucros das empresas produtoras de energia. Na discussão do Orçamento do Estado para 2018, o Bloco negociou com o Governo um corte desta parte da fatura mas, na 25.a hora, o primeiro-ministro cedeu aos interesses das grandes produtoras de energia e voltou atrás na palavra dada.

A outra razão é o peso que os impostos sobre o consumo têm na fatura da eletricidade. Graças a uma decisão do Governo PSD/CDS durante a troika (que teve a oposição do PS), a taxa de IVA sobre a eletricidade é a mesma que se paga pelo caviar, 23%.Ou seja, a política fiscal do Estado considera que a eletricidade é um bem de luxo, o que torna também de luxo a decisão de acender o aquecedor lá em casa quando estamos cheios de frio.

Por todas as boas razões, porque pesa na fatura e porque a energia deve ser considerada como um bem essencial, taxado como todos os outros bens essenciais, o Bloco de Esquerda defendeu no programa eleitoral a diminuição do IVA da eletricidade. Partimos para as negociações do OE 2020 com a determinação de cumprir o nosso mandato.

O Bloco quis negociar, mas o Governo minoritário do Partido Socialista não aceitou discutir uma proposta intermédia de descida faseada do IVA para 13%. Não quis discutir as medidas de compensação que propusemos, como a subida do IVA da hotelaria ou o fim dos benefícios fiscais para estrangeiros com residência não habitual. A única resposta do Governo foi pedir autorização a Bruxelas para uma descida mitigada e de efeitos duvidosos, numa carta que até em Bruxelas foi desvalorizada. O Governo podia ter negociado, mas preferiu a dramatização, ameaçando com mais uma crise política artificial.

A chantagem é inaceitável e recorre a falsidades. Ninguém acredita que depois de baixar o IVA da eletricidade não sobrará dinheiro para o SNS. Num ano em que o excedente previsto é de 600 milhões e estão reservados para o Novo Banco pelo menos 850 milhões, cai por terra o argumento da irresponsabilidade orçamental.

Restou então ao Governo o pior argumento de todos: invocar a emergência climática. Vindo de um Governo que decidiu, contra tudo e todos, construir um aeroporto numa zona protegida e sem acesso ferroviário, a motivação já teria pouca credibilidade. Mas, além disso, não há nenhum indício de que a descida da fatura da luz leve as pessoas a consumir mais do que precisam. Mal está a salvação do planeta quando tentam explicar-nos que a solução ambiental é deixar que as pessoas morram de frio.

A verdade é só uma: o Governo minoritário do Partido Socialista recusou negociar a descida do IVA. Preferiu ir às cegas para este debate, talvez confiando que algum partido teria mais simpatia pelo PS do que coerência com o seu próprio programa. Julgou-se autossuficiente sem ter votos para isso, não pode agora vitimizar-se só porque descobriu que não o é.

Sem cartas na manga, o Bloco deixou sempre claro que votaria todas as propostas que permitissem baixar o IVA já neste Orçamento do Estado, coisa que a proposta original do PS não garantia, desde que as medidas de compensação não incluíssem cortes escondidos nos serviços públicos. E foi isso que fizemos, em nome da justiça e do nosso mandato.

Artigo publicado no jornal “I” a 6 de fevereiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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