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Redução das propinas e o que fica por fazer

Precisamos de uma política corajosa capaz de provocar mudanças significativas numa altura em que a propina nos leva o dinheiro da renda, a renda leva o da propina — e no fim não sobra nada.

Depois de 25 anos de propinas sempre a subir, este é o segundo ano consecutivo em que as propinas são reduzidas. Em dois anos, a propina máxima desce quase 400 euros. Em reação a esta notícia, há quem desvalorize o seu impacto. Por isso, importa clarificá-lo.

As propinas são um entrave à igualdade de oportunidades e distorceram todo o sistema de ação social. Na verdade, a maior parte das bolsas destina-se apenas ao pagamento de propinas, ignorando o facto de a frequência no Ensino Superior pressupor outras despesas, justamente as que a ação social deveria cobrir. Hoje, as bolsas não resolvem a desigualdade de oportunidades criada pelas propinas. O bloco central criou um problema (a desigualdade no acesso) e apontou uma solução (as bolsas) que nunca o resolveu. Não reconhecer o entrave que as propinas constituem é desconhecer por completo a realidade de quem estuda, ou quer estudar. Por outro lado, é ignorar que a captura de receita com propinas tem servido de desculpa para que o Estado se descarte da sua função de financiador da educação, como aliás já foi estudado, nomeadamente pela Luísa Cerdeira, do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, que considerou que a abolição das propinas aumentaria a acessibilidade ao Ensino Superior.

Nos últimos anos, especialmente com o aumento galopante das rendas nos grandes centros urbanos, os custos da frequência no Ensino Superior tornaram-se incomportáveis para grande parte das pessoas, o que se reflecte nos números do abandono escolar. Quando pensamos em abandono escolar não pensamos apenas naqueles que já lá estão e poderão vir a sair, mas também naqueles que, mesmo querendo, nunca chegaram a ingressar e a quem muito importa o valor das propinas. Durante a maior parte da anterior legislatura, o Ensino Superior foi sendo deixado para trás e multiplicaram-se as vozes descontentes. De 2017 para 2018, a manifestação do Dia do Estudante duplicou a participação em Lisboa e em Coimbra. Em 2019, o Orçamento do Estado (OE) acolheu uma proposta do Bloco de Esquerda para reduzir, pela primeira vez em mais de 20 anos, a propina máxima da licenciatura.

A proposta do OE para 2020 não contemplava um único alívio da despesa dos estudantes com o Ensino Superior. Depois das negociações, o compromisso firmado entre o Bloco e o Governo de mais uma redução das propinas, desta vez de 170 euros, foi uma das razões que justificaram a sua viabilização. É uma boa notícia para quem sempre afirmou que as propinas não são inevitáveis e que a educação, como direito fundamental, deve ser pública e publicamente financiada. Trata-se, então, de continuar a redução das propinas iniciada há cerca de um ano, quando o movimento estudantil voltou a pôr no topo da agenda os custos insuportáveis do superior.

A redução da propina máxima é a prova de que é possível reverter o caminho que se tem seguido nas últimas duas décadas, baseado na ideia do “utilizador-pagador”. Esta redução dá a mão aos muitos milhares de estudantes que, não sendo elegíveis para bolsa de ação social, às vezes por terem ganho mais dez euros do que o limiar de elegibilidade, se veem a braços com uma propina incomportável para o seu bolso. São empurrados para o abandono escolar ou para trabalhos precários a fim de pagarem as suas propinas, acabando ironicamente por aumentar a probabilidade de lhes ser novamente negada a bolsa por terem auferido rendimentos. A redução das propinas pode interromper este círculo vicioso e fomentar mais justiça social no acesso ao superior.

Porém, se a redução das propinas no primeiro ciclo não se fizesse acompanhar de medidas complementares relativamente ao segundo ciclo, teria efeitos perversos para quem prossegue estudos para além da licenciatura. Sem controlo ou teto das propinas de mestrado, o cálculo do valor das bolsas de ação social para o segundo ciclo faz-se tendo em conta a propina de licenciatura. Ao mesmo tempo que o Governo autorizou o aumento exponencial das propinas de mestrado, não garantiu que as bolsas de ação social não desciam em função da descida da propina de licenciatura, dificultando o acesso aos mestrados, que são apresentados como cada vez mais necessários para complemento da licenciatura.

Quem vive o seu quotidiano imerso nos institutos e nas faculdades, como funcionário, investigador, estudante, às vezes ambos, sabe que não raras vezes é nas letras pequenas das grandes máximas que reside o poder de sabotagem de medidas justas. A par da redução das propinas de licenciatura, é também urgente controlar a propina dos mestrados e doutoramentos — uma proposta chumbada sucessivamente por PS, PSD e CDS-PP. Como será também necessário rever o regulamento de bolsas, para que estas sejam um mecanismo de equidade, e garantir que os bolseiros de mestrado não sejam obrigados a pagar mais do que a propina máxima prevista no cálculo da sua bolsa. Por fim, é imprescindível garantir as transferências necessárias do OE para as instituições, esvaziando assim a instrumentalização da redução das propinas como desculpa para o aumento de outras despesas imputadas a estudante.

Estas medidas simples só não avançam se o Governo do PS não quiser. Precisamos de uma política corajosa capaz de provocar mudanças significativas numa altura em que a propina nos leva o dinheiro da renda, a renda leva o da propina — e no fim não sobra nada. Vejamos a situação no alojamento estudantil. O Plano de Alojamento para 2019 apresentava um total de 15.965 camas para todo o país, sendo que o número de estudantes deslocados ultrapassa os 60.000. Qualquer estudante será capaz de reconhecer que o que precipitou a crise do alojamento estudantil não foi somente a falta de residências, mas sim a crise generalizada na habitação. Sem uma visão que vá além da ponta do icebergue e sem coragem política para intervir em problemas estruturais, como o financiamento do Ensino Superior e o laissez faire na habitação que já expulsou milhares dos centros das cidades, não teremos soluções de fundo. Queremos a redução das propinas, mais camas em residências, mas queremos muito mais do que está previsto. Queremos o básico: poder viver, trabalhar e estudar neste país.

Artigo publicado no “Público” a 13 de janeiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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