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Irão a Portugal

Há povos que se apresentam no Primeiro Mundo com uma latente incapacidade para resolver puzzles geográficos.

É a arrogância de quem se entende como criador, intérprete e juiz, um princípio de calamidade sem tempo que, atravessando a pobreza, ultrapassa-a sem piedade. Não será um privilégio nativo norte-americano mas a probabilidade de insucesso em geografia aumenta proporcionalmente à escala da imensidão do território e da falta de noção da realidade fora de portas. Para consumo interno conservador, a grandeza dos EUA é viril e esmaga. Na vastidão do que está imerso, daquilo que se respira fora do barril de petróleo e se sente como íntimo, a realidade é que o monstro pode bem precisar de amigos.

Audazes são os líderes que arriscam. Quando confrontados com a necessidade de identificar um alvo, a hesitação - percebe-se - é mais do que muita. Ainda assim, há uma representação de voz de comando ao cuidado da percepção. De Nixon a Reagan, de Bush a Bush, de pai para filho e para Trump, sucessão directa que termina na mais inapta da descendência. A Bush sobrava em táctica o que a mini-Bush sobejava em interesses. Já a Trump só a agenda interessa, ressuscitando o lado cowboy de Reagan com upgrade em "odds".

Quando só cerca de 25% dos norte-americanos conseguem apontar a localização do Irão no mapa, muito fica dito sobre o sentimento de orfandade de um bom inimigo externo após a queda da União Soviética. É quase como se existisse um agressor estéril e sem estirpe, gravitando entre algures e lado nenhum e que, no fundo, não suplanta a ideia de ser um tremendo álibi bélico para PNL interior de alto desempenho. Donald Trump deitou mão ao derradeiro excitador de política interna ao serviço da sua agenda presidencial anti-impeachment. Sem embargo de razões extra que vão para além dos esteróides, arranca-se uma escalada inevitável com um nome indisfarçavelmente impronunciável: Qassem Soleimani. Mal dito, mal feito. Por que razão o eleitorado de Trump se esmeraria mais na pronúncia do que na geografia?

Mesmo entre vizinhos há geografias bem relativas. Começamos o ano com estupefacção ao percebermos que a armada do VOX tenta anexar território sem armas. A extrema-direita espanhola, reunida na "Plataforma Espanha existe", apresenta a unificação de Espanha com Portugal anexando o nosso país em mapa para redes sociais, desprezando as Ilhas Canárias e Baleares, Ceuta e Melilla. Um exercício facilitista de exclusão. A ilusão de grandeza é vizinha do desconhecimento, idiotice e soberba. Mais de 75% do eleitorado do VOX sabe bem como apontar Portugal no mapa.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 10 de janeiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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