França: os protestos massivos vão marcar o início de 2020

A França terminou 2019 em ebulição. A cinco, dez e 17 de dezembro multiplicaram-se as jornadas de luta contra a reforma das pensões. Os protestos dos “coletes amarelos” comemoraram já um ano de ações. Macron continua a ser o profundamente impopular “presidente dos ricos”.

30 de December 2019 - 9:30
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"Macron, uma prenda para ti: oferecemos-te a reforma aos 41 anos", pode ler-se nesta pancarta na manifestação de 10 de dezembro em Paris. Foto Photothèque Rouge/Martin Noda/Hans Lucas

Presidente dos ricos”

Emmanuel Macron foi eleito em maio de 2017 com 66,1% e o seu partido, e aliados, obteve 350 mandatos em 577 deputados, um mês e meio depois. Nos primeiros dois meses de mandato, o presidente francês tinha uma popularidade próxima dos dois terços. Um ano e meio depois, no final de 2018, Macron era o chefe de Estado mais impopular de sempre em França, graças à sua agenda neoliberal. Nas eleições europeias de maio de 2019, a République en Marche, o partido de Macron, ficou em segundo lugar, elegendo 21 eurodeputados, enquanto o partido de extrema-direita Rassemblement National de Marine Le Pen elegeu 22 eurodeputados.

Os “coletes amarelos”, cujos protestos iriam prolongar-se ao longo de todo o ano de 2019, fizeram o seu primeiro protesto a 17 de novembro de 2018.

Ópera de Paris em greve

Ópera de Paris em greve - 24 de dezembro de 2019

Ópera de Paris em greve - 24 de dezembro de 2019

Um ano após o início do movimento dos “coletes amarelos”, milhares de pessoas voltaram a ocupar as ruas francesas exigindo que o presidente Emmanuel Macron ouça as suas reivindicações. Cumpriu-se a 53ª mobilização, com um total de 270 manifestações convocadas por toda a França. No sudeste do país, os manifestantes distribuíram panfletos nas estradas sem bloqueá-las. No Norte de França os manifestantes ocuparam algumas rotundas para exigir maior "justiça social, fiscal e climática".

Em Paris, a Place d'Italie, no sul da capital, foi palco de confrontos entre manifestantes e polícia. Um dos manifestantes que tem participado desde o início nos protestos expressou a sua convicção de que muitos dos elementos que se infiltram nos protestos e que instigam a violência são agentes da polícia ou mercenários.

Os manifestantes garantem que não vão retroceder e que continuarão a mobilizar-se por um futuro melhor para si e para os seus filhos, sendo que a situação em França está cada vez pior. Sublinhando que as razões que levaram aos protestos não desapareceram, culpam o governo do presidente francês, Emmanuel Macron, pela perda de poder de compra, o aumento de impostos e as desigualdades sociais.

Em dezembro a França assistiu a uma das mais impressionantes greves, ela foi massiva contra a reforma das pensões de reforma face às ameaças contra os setores dos transportes, educação e saúde. Por toda a França, multiplicaram-se as imagens de gares vazias, escolas bloqueadas e de mobilizações nas ruas. Oficialmente convocadas eram 245 as concentrações e manifestações esperadas mas entretanto, plenários de trabalhadores e de estudantes decidiram no próprio dia o que fazer.

90% dos comboios pararam em toda a França, onze das linhas de metro de Paris fecharam, sete das oito refinarias do país paralisaram. Até várias esquadras de polícia encerraram. E os sindicatos apontaram 70% de grevistas nas escolas. Houve sete campus universitários bloqueados, em Lyon, Rennes, Toulouse, Montpellier, Nantes e Paris e muitos liceus em diversos pontos do país também. Em Rennes para além do bloqueio da Universidade, várias das entradas da cidade foram igualmente bloqueadas.

A cinco, dez de dezembro e 17 de dezembro multiplicaram-se as jornadas de luta contra a reforma das pensões. Para além da greve nos transportes, a Função Pública, nomeadamente o ensino e a saúde, conheceram fortes mobilizações. Controladores aéreos, pessoal de bordo e pilotos de aviões também pararam. Houve perturbações nos aeroportos de Paris, Lyon e Montpellier. Em dezenas de cidades, houve manifestações em que aos vários sindicatos se juntaram conhecidos ativistas do movimento dos coletes amarelos e estudantes.

A Ópera de Paris, em greve, improvisou um concerto no meio da manifestação. E, também no setor da cultura, os trabalhadores intermitentes dos espetáculos bloquearam a saída dos camiões que contêm o material de filmagem para anúncios publicitários, programas de televisão ou cinema.

A terminar o ano em ebulição, a resistência dos “coletes amarelos” e os protestos massivos de diversos sectores sociais vão marcar o início do ano e da luta em França em 2020.

O imposto GAFA e a capitulação do governo francês

Em tempo de retrocesso e retirada de direitos o ministro da Economia e das Finanças francês, Bruno Le Maire, que defende a supressão do imposto sobre as grandes fortunas propôs o imposto Gafa (Google, Amazon, Facebook, Apple), afirmando que este tipo de imposto trata apenas de justiça fiscal mínima e lembra que os gigantes digitais pagam muito menos impostos que as pequenas e médias empresas europeias. O imposto destina-se a empresas que tenham ganhos de mais de 750 milhões de euros no mundo e de mais de 25 milhões em França e tributa 3% dos rendimentos sobre a monetização da audiência revendida sob a forma de publicidade personalizada, a revenda de dados pessoais com fins comerciais e as comissões sobre transações realizadas através de plataformas de intermediação entre clientes e vendedores de bens e serviços pelo que não se aplica apenas a empresas como a Google, Amazon, Facebook, Apple mas também a três dezenas de outras empresas como, por exemplo, Meetic, Airbnb, Uber, Booking ou o Instagram.

Os Estados Unidos não gostaram da ideia subjacente ao imposto GAFA e o presidente Trump pressionou o governo francês com a ameaça de taxar as exportações de vinho franceses para o seu país. O ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, encontrou-se com Steven Mnuchin, secretário de Estado das Finanças dos Estados Unidos da América, e com Larry Kudlow, conselheiro económico do presidente Trump, e o Estado francês comprometeu-se a reembolsar as empresas americanas taxadas da diferença entre o imposto decidido pelos franceses e o valor de um mecanismo tributário a ser estudado pela OCDE. A cedência do governo francês ao lóbi das grandes empresas digitais norte americanas facilitou a pressão internacional para reverter o imposto francês a troco de um acordo multilateral, sob a égide da OCDE, que será muito menos vantajoso para os estados.

Coletes amarelos: “Não vamos ficar por aqui”

Os “coletes amarelos” iniciaram a sua luta contra um novo aumento da taxa carbono sobre os combustíveis ainda em 2018. As reivindicações dos manifestantes rapidamente escalaram para uma maior justiça fiscal, com a progressividade dos impostos, e uma maior justiça social, com especial preocupação para o "bem-estar para os idosos". O combate à precariedade e a defesa da valorização dos salários, uma transição ecológica sustentável e outra política migratória têm sido outras das suas preocupações. A demissão de Emmanuel Macron é igualmente uma exigência constante do movimento.

As manifestações reuniram milhares de pessoas em toda a França. Segundo o Ministério do Interior, 51.400 pessoas participaram já no 13.º sábado de protestos. Uma das iniciativas que os “coletes amarelos" iniciaram em fevereiro foi uma “marcha pacífica” até Paris para exigir um referendo de iniciativa cidadã. De acordo com um inquérito, no primeiro trimestre dos protestos mais de 60 por cento dos franceses afirmaram apoiar a luta dos "coletes amarelos".

Na cidade de Toulouse, o protesto organizado por “coletes amarelos” e ativistas da Attac concretizou-se no bloqueio dos acessos às instalações da Amazon, impedindo a saída de encomendas como forma de denuncia da ação poluente da empresa à escala global e denúncia dos esquemas que lhe permite escapar ao pagamento de impostos nos diversos países em que se instala.

Em várias manifestações, como as de Clermont Ferrand ou Montpellier, a polícia voltou a reprimir com brutalidade os manifestantes provocando dezenas de feridos.

Em 17 de novembro de 2019, os coletes amarelos cumpriram um ano de mobilizações e anunciaram: “Não vamos ficar por aqui”.

Marcha dos mutilados”

Ao todo, os números oficiais apontam para 2448 manifestantes feridos desde a primeira manifestação dos “coletes amarelos”. Em Paris, juntaram-se entre 300 a 400 manifestantes para a chamada “marcha dos mutilados”, em junho de 2019. Estavam presentes coletes amarelos que perderam membros, olhos e que viram as funções cerebrais afetadas devido a armas utilizadas pelas forças de segurança. Os organizadores contabilizaram 24 pessoas que perderam olhos, cinco com mãos mutiladas, um com perda de testículo e três que perderam o sentido do odor a que se juntaram dezenas de outros casos de ferimentos permanentes. Por isso, estavam nas ruas exigindo que as armas flashball/LBD, as balas de borracha e granadas lacrimogéneas, sejam proibidas nas manifestações. Já o secretário de Estado do Interior, Laurent Nuñez, rejeitou esta exigência, afirmando que não tinha quaisquer remorsos por ter mandado a polícia utilizar estas armas contra manifestantes desarmados.

Marcha dos mutilados, pela polícia nas ações dos coletes amarelos - Paris, junho de 2019

Marcha dos mutilados, pela polícia nas ações dos coletes amarelos
Paris, junho de 2019

A precariedade mata

Em novembro quando se assinalou um ano dos protestos dos “coletes amarelos” o desespero levou um estudante universitário a imolar-se em frente ao Centro Regional de Obras Universitárias e Escolares, em Lyon. O estudante, Anas Kournif anunciou a sua decisão nas redes sociais, apresentando-a como um protesto político contra a precariedade na vida dos estudantes universitários franceses. "Se estou a visar o edifício do CROUS não é por acaso. Pretendo um lugar político, o Ministério do Ensino Superior e da Pesquisa e, por extensão, o Governo", escreveu numa publicação no Facebook.

Segundo um inquérito publicado no início do ano letivo pelo sindicato estudantil Unef, 22,7% dos estudantes universitários franceses atravessou grandes dificuldades financeiras no ano letivo anterior. As despesas com alojamento representam quase 70% do orçamento mensal dos estudantes. A subida no preço das refeições das cantinas, bem como das rendas e das taxas obrigatórias têm agravado a situação, que é particularmente difícil para os estudantes estrangeiros não europeus, que viram as taxas de inscrição em licenciaturas e mestrados aumentar quase 1.500% — de 170 e 230 euros para 2.770 e 3.770 euros, respetivamente.

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