You are here
Combater a extrema direita onde ela é só direita
O programa económico da extrema direita é o programa económico da direita. A extrema direita quer erradicar o Estado Social e di-lo com clareza: “Ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de Educação ou de Saúde, ou sejam os bens vias de comunicação ou meios de transporte”. Foi este programa que a extrema direita levou a votos. Se agora se apresta a fazer uma operação de ocultação, não será mais que um truque de politiquice tardio.
A extrema direita entende, portanto, que a escola pública é um vício totalitário, que o Serviço Nacional de Saúde é um monstro coletivista, que as estradas e os caminhos de ferro deviam ser privatizados e que redes de transportes públicos são hinos soviéticos. Às vezes afirma-o sem filtros. Outras vezes, mais cautelosa e com sentido tático mais apurado, suaviza a linguagem sem suavizar a escolha de fundo: “o Estado deverá promover a gestão privada dos hospitais públicos, com demonstração pública do benefício obtido e redução de custos para o contribuinte (…) Entendemos que deve haver um alargamento da oferta privada suportada pelo Estado, para os mais pobres e de classe média (…) para pessoas de rendimentos muito baixos então lá estará o SNS” – assim rezam os seus documentos programáticos.
O que fica patente nestes enunciados é que a extrema direita tem dois registos. Por um lado, nas políticas em que se joga a sustentação e os direitos materiais de cada um, a extrema direita faz parte do sistema, do universo dos interesses económicos, da promiscuidade entre o Estado e os grupos empresariais, da alimentação dos privados pelo erário público. Por outro, na excitação das massas, na agenda da espuma, a extrema direita grita contra o sistema, vocifera que são todos uns ladrões e exige sangue.
A extrema direita tem a escola de Holywood: para manter o sistema (económico e social) exatamente como ele é, atira os holofotes para as margens. Para manter o poder económico intocado, alimenta a política com entretenimento histriónico e boçal. A extrema direita joga com as luzes e com as sombras com perícia: para não se expor à crítica por projetos sobre saúde, educação, salários ou pensões, multiplica votos sobre tudo o que não seja isso, desde uma pretensa lista dos países amigos de Portugal até ao preço dos passaportes na Venezuela. É a política do flash e do discurso de ódio para o seu palco político preferido que são as redes sociais, onde a extrema direita nada diz sobre quais são as suas propostas concretas e detalhadas para a fatura da luz, para a idade da reforma ou para as parcerias público-privado nas estradas ou nos hospitais.
É nesse silêncio da extrema direita que ela tem que ser mais combatida. A direita não o faz porque uma e outra se irmanam na defesa das rendas dos privados pagas pelo Estado e de serviços públicos desqualificados só para indigentes. A direita tradicional e a extrema direita são ambas pró-sistema, defendem por igual o sistema económico e abjuram o Estado sempre que este põe em risco esse sistema. É a esquerda que tem que fazer daquele combate a sua prioridade. Denunciando discursos de violência social e manobrismos políticos, claro. Mas, mais que tudo, mostrando como a extrema direita é apenas uma variante da política conservadora do essencial e disputando, com inteligência e determinação, a mudança disso que é essencial.
Nesse combate inteligente e determinado contra a extrema direita, a esquerda não pode usar a agenda mais visível da extrema direita com a ilusão que é assim que a vai derrotar – acabará trazer essa agenda, que é periférica, para o centro do debate. Tem que ser um combate pelo essencial das vidas contra a distração. Um combate pelo salário, pela pensão, pelo primado dos serviços públicos, pelas transformações económicas e sociais necessárias para um futuro ecologicamente equilibrado, por liberdades jurídicas sustentadas em igualdade económica. E sempre, sempre, pela diversidade cultural contra o rolo compressor da mentira e da boçalidade.
Artigo publicado na revista Visão a 19 de dezembro de 2019
Comments
Para se combater a extrema
Para se combater a extrema direita é preciso uma esquerda anti-sistema que não vá na cantiga do PS.
Eu não iria por aí. Os dogmas
Eu não iria por aí. Os dogmas do neoliberalismo radical são centrais no programa da IL, que vende esse peixe específico ao mercado específico que ainda o quer comprar depois de 2008. Quando este mercado estiver saturado acaba o crescimento da IL. Mas esses dogmas são acessórios e periféricos, e portanto descartáveis, na agenda do Chega. Durante algum tempo o Chega acreditou que para ser de direita precisava deles; mas está a descobrir que não precisa e que a sua agenda reaccionária até pode beneficiar se se colocar, pelo menos na aparência, contra eles. Poderá então alegar, como alega Steve Bannon referindo-se ao Partido Republicano, que é o verdadeiro partido dos trabalhadores. E este é um mercado do qual não conhecemos a dimensão; não conhecemos, portanto, o potencial de crescimento do Chega.
Para a esquerda o desafio é este: mostrar pela acção, e não pelas palavras, que nunca será a extrema-direita a defender os trabalhadores; e ir sem reservas à luta de classes quando se torna cada dia mais óbvio que está convocada para ela.
Add new comment