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Dois paradoxos da Uber e Airbnb

Com o ‘boom’ do turismo veio o ‘boom’ das plataformas digitais, que não cumprem os direitos do trabalho. E com elas os trabalhadores que não pagam impostos sobre o trabalho, nem Segurança Social, que não têm seguro. São algoritmos.

Chamam-lhe economia da partilha e normalmente é um serviço facilitado por uma plataforma digital. É o que fazem empresas como a Uber, a Airbnb, a Glovo, a Bolt ou a Amazon e estão a mudar as nossas cidades. Com o boom do turismo veio o boom das plataformas em Lisboa, e vale a pena pensar em dois paradoxos que estas empresas trazem.

O primeiro é sobre algoritmos. Yuval Noah Harari – autor de vários best-sellers como “Sapiens: História Breve da Humanidade” e “Homo Deus: História Breve do Amanhã” – diz, neste seu último livro, que os seres humanos, na verdade, são algoritmos complexos. Somos apenas informação e à informação havemos de voltar, “dust to dust” com os dados que circulam nos nossos cérebros e corpos a poderem ser conectados com inteligências artificiais para nos tornarmos super pessoas, ou pelo menos para a elite económica se tornar super humana, meta humana.

Não quero valorizar esta opinião do Harari, mas quero sinalizar que uma das palavras de ordem dos trabalhadores da Amazon é, precisamente, “somos humanos, não nos tratem como robôs”. Esse protesto acontece porque a empresa de Jeff Bezos estudou cada movimento humano para otimizar o trabalho dessa mão de obra, cada passo dos seus trabalhadores e dos seus robôs.

Não é impedir um trabalhador de se sentar ou de ir à casa de banho, como tantas vezes acontece nas lojas, é definir quantos passos têm de dar, quando e como se devem sentar, quando e como devem ir à casa de banho e comer. O resultado deste modo de trabalho é óbvio. Um modo de produção em que os trabalhadores se queixam de enorme stresse no local de trabalho, pressões e assédio, resultando em problemas graves para a sua saúde.

Depois, existe o exemplo dos Cloud Human – por oposição ao cloud computing – com muitas pessoas a trabalhar através dos computadores nas suas casas, em cidades diferentes, em países diferentes, num sistema on-demand.

Alguns exemplos: Adi Nagara vive em Jacarta, na Indonésia, e faz consultoria para a empresa de computadores a 16.000 km de distância; Maria Palma, de Leiria, licita num leilão ao contrário o preço do seu trabalho de tradução, ou seja, ganha quem licitar mais baixo o preço por palavra e o leilão é mundial. O Cloud Human não tem um trabalho, tem tarefas ou projetos, partes de trabalhos cortados aos bocadinhos como o Fordismo fez aos processos de produção fabril.

O segundo paradoxo é sobre dados. Quando me ligo à Amazon e compro um livro de Harari e uma camisa aos quadrados, o algoritmo passa a saber mais do que a minha esposa sobre os meus gostos e imediatamente me sugere comprar uma máquina de barbear para a minha barba hipster. O mesmo acontece com a Uber, Uber Eats, Airbnb, qualquer uma delas.

Depois da segunda compra e com base no meu género, idade, amigos do Facebook, modelo de telemóvel e posição GPS, o algoritmo sabe mais do que a minha família sobre o que eu gosto de receber no Natal. Mas se temos uma indústria que vive de Big Data e de algoritmos, porque é que não temos uma única informação sobre os seus trabalhadores? Quantos são? Quem são? O que ganham? Que idade têm? São homens? São mulheres?

E se não sabemos quem são, se não sabemos o que ganham, sabemos que não temos ferramentas para os proteger dos riscos sociais, não temos como protegê-los na doença, na maternidade, no desemprego, na velhice.

E sabemos mais. Sabemos que se não os conhecemos, a legislação laboral não se lhes aplica, não os protege: o algoritmo pode despedir um motorista da Uber ou da Uber Eats por baixar o rating de avaliação, diz-se ‘desconectar’. E se o Estado não os conhece, eles também não se conhecem uns aos outros e são muito difíceis as lutas em comum e a sua representação sindical.

Em Portugal a situação é particularmente grave, pois somos um dos países europeus com mais trabalhadores de plataformas. De acordo com um estudo da Comissão Europeia, cerca de 10,6% dos trabalhadores trabalham para as plataformas. O crescimento acompanhou o turismo.

Isto significa que a Uber, o Airbnb, a Bolt, a Uber Eats, sabem tudo sobre estas pessoas, determinam quanto ganham, qual é o seu trabalho e como é que fazem a rota do seu trabalho. Mas o Ministério do Trabalho não os conhece, as plataformas não cumprem os direitos do trabalho e os trabalhadores não aparecem nos mapas de pessoal, não pagam impostos sobre o trabalho, não pagam Segurança Social, não têm seguro, são algoritmos. São trabalhadores na cloud e está na altura de voltarem à terra.

É preciso dizer o óbvio: os trabalhadores das plataformas são trabalhadores. Têm de ter acesso ao salário mínimo, férias, fins de semana, acesso ao subsídio de desemprego. E se concordamos que é assim, então temos de regular a economia da partilha.

Artigo publicado em “Jornal Económico” a 16 de dezembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Engenheiro e mestre em políticas públicas. Dirigente do Bloco.
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