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Saúde, habitação, IVA da eletricidade: o que escolher?

O tempo da credulidade para um investimento orçamentado que depois será cortado já acabou, e a responsabilidade foi do ministro Mário Centeno.

Achou o Governo que pescar à linha os apoios para o Orçamento seria uma forma de vida. Até muito hábil, sussurraram os estrategos, dados os alinhamentos de forças que resultam das eleições e a suprema vontade de fazer o funeral à ‘geringonça’, afinal o que determinou todas as bizarrias da campanha eleitoral contra os anteriores aliados. A esses génios da arrumação política faltou pensar nas coisas da vida real, a começar por essa evidência de que um quadro contratual com objetivos partilhados é estabilidade. Agora que avança a preparação do Orçamento, torna-se evidente que o Governo fez uma má escolha, depende do que outros decidirem.

Uma prioridade antes de todas: saúde

Como há que escolher prioridades, que o Orçamento não dá para tudo, noto que as duas mais relevantes que resultam das eleições são a habitação e a saúde. Deveriam ser os planos estratégicos mais ambiciosos e os pilares da reorientação do investimento para conduzir a soluções com resultados visíveis em poucos anos.

Da habitação já aqui tratei. Sobre a saúde quero acrescentar a evidência: o desgaste sofrido no SNS já alcançou o ponto de alarme. Há anos que sabemos que este tempo chegaria, pois mais de metade do pessoal médico passou os 50 anos e não sobra capacidade de garantir as urgências. Mas também se sabe que o envelhecimento da população agravará a pressão, que sobem os custos com novos medicamentos, que a concorrência dos privados reduz as disponibilidade de profissionais. Se registarmos as escolhas dos sucessivos governos, incluindo o último, fica uma enciclopédia de ligeirezas (“somos todos Centeno”), de medidas contraproducentes (uma maioria absoluta do PS acabou com a exclusividade dos médicos, que já só abrange 43% dos 13 mil médicos), de preconceito corporativo contra a especialização de enfermeiros e de desculpas que envergonham. Acrescentem-se anos e anos de subfinanciamento, de adiamento de investimentos essenciais, atrasando o reequipamento ou a construção de hospitais, e a permissividade em relação a grupos financeiros com a porta giratória para esse mundo (um governante do PS na saúde não é hoje o presidente da associação de hospitais privados?), e teremos o retrato da exasperação dos profissionais.

Entretanto, a direita percebeu a oportunidade e martela nas falhas do SNS. Como o espaço público está invadido pela vertigem das urgências que fecham, esta estratégia é eficaz. Por isso, César e Ana Catarina Mendes sentiram o toque, pediram orçamento para a saúde e Costa fez uma promessa misteriosa. Os partidos de esquerda não dizem outra coisa desde há anos: salve-se o SNS e a democracia respira. Veremos então se agora é a sério, se é restabelecida a exclusividade que o Governo recusou no verão passado e se é contratado o pessoal necessário.

O IVA e o investimento

Como sempre, o problema é que é preciso pagar isto tudo. Se, além da saúde e da habitação, em que deveria crescer a despesa, um bom orçamento reduzir o IVA da eletricidade e corrigir os escalões do IRS, também baixa a receita. Há várias formas de pagar estas diferenças: o englobamento dos rendimentos, que é justiça elementar, a tributação das rendas energéticas, usar o excedente orçamental. Note-se que o IVA da eletricidade custa ela por ela o que o Governo já perde com o IRS a zero dos pensionistas estrangeiros.

Mas o primeiro-ministro tem razão, o dinheiro deve ser usado por ordem de prioridades. Então a pergunta difícil é esta: podem as decisões essenciais ser resumidas num programa de investimento? Talvez. Mas há uma dificuldade na promessa de mais investimento, é que orçamentá-lo equivale a antecipar que não é cumprido. Nos últimos quatro anos o logro ficou em quase três mil milhões, ou cinco vezes o que o Governo promete para habitação nesta legislatura. Se, em contrapartida, houvesse um grande salto no esforço público na contratação de pessoal na saúde e no programa de habitação, a conta seria mais confiável. Ora, como o Governo não quis um contrato estável para medidas estruturais, percebo que haja quem queira que no Orçamento se tenha um pássaro na mão em vez de duas promessas a voar. O tempo da credulidade para um investimento orçamentado que depois será cortado já acabou, e a responsabilidade foi de Centeno.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 30 de novembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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