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De Trump a Ventura: o que nos está a escapar!

Um líder da direita radical ou da ultra-direita não tem problemas de incongruência, de inconsistência ou de incoerência, de dissonância, de mentira, de vergonha (ou falta dela). A esta direita não se aplicam os critérios normais de escrutínio a que estamos habituados.

“Eu podia estar no meio da 5ª Avenida (em Nova Iorque), matar alguém e ainda assim não perdia votos”. A frase é de Donald Trump, durante a campanha presidencial de 2016. Infelizmente, a profecia veio a cumprir-se. Trump fez tudo o que seria inimaginável e os seus apoiantes continuam de pedra e cal:

- Teve um relacionamento extra-conjugal com uma atriz porno durante a gravidez do seu último filho e ainda assim os evangélicos continuam a defender que ele é um enviado de Deus;

- Cometeu traição à pátria em conluio com a Rússia e tentou obstruir a justiça Americana e ainda assim os republicanos mais patriotas continuam do seu lado;

- Fez chacota de veteranos de guerra Americanos durante um comício e ainda assim tem uma base eleitoral repleta de militares;

- Disse que as mulheres se conquistam “agarrando-as pela vagina” e ainda assim teve 56% da votação das mulheres brancas;

- Disse que uma manifestação de nacionalistas que entoavam o cântico “os judeus não nos vão substituir” estava cheia de “gente boa” e ainda assim tem ao seu lado o governo de Israel;

- Disse que os Latinos eram um bando de violadores e criminosos e ainda assim há um grupo chamado “Latinos for Trump”;

Todos estes “escândalos” foram noticiados, analisados, dissecados à exaustão pela imprensa. O presidente americano enfrenta agora um processo de destituição por pedir a um governo estrangeiro para arranjar um escândalo de corrupção envolvendo o seu adversário democrata Joe Biden. E neste caso nem foi preciso nenhum trabalho jornalístico de investigação: o próprio presidente revelou publicamente a conversa telefónica em que o pedido era feito. E ainda assim... a maioria dos republicanos estão do seu lado.

 

Parece incrível, parece inventado, parece fantasia, parece uma distopia orweliana. Mas é mesmo o que está a acontecer ao mundo. E a perplexidade que nos assola só está cá porque estamos desatentos. Um líder populista de extrema-direita, um fascista, não precisa da verdade, dos factos, para se manter “popular”. Um líder da direita radical ou da ultra-direita não tem problemas de incongruência, de inconsistência ou de incoerência, de dissonância, de mentira, de vergonha (ou falta dela). A esta direita não se aplicam os critérios normais de escrutínio a que estamos habituados. Se não percebermos isso, não os conseguiremos derrotar. Basta observar como tem passado incólume André Ventura a todos os escândalos que em poucos meses já se lhe encontrou: a tese de doutoramento, as assinaturas falsas para a legalização do partido, o financiamento obscuro da campanha ou as faturas falsas dos coletes à prova de balas que levou para o debate com o primeiro-ministro. Tudo isto aconteceu, foi noticiado, devidamente desmontado e, no entanto, André Ventura continua a aumentar a sua base de apoio. E assim continuará a ser. Por muito que a imprensa e os adversários se esforcem por apontar e desconstruir as incongruências. Mesmo sendo um produto do sistema, criado nas hostes do PSD, levado aos píncaros por Passos Coelho, André Ventura é, para os seus apoiantes, o “crítico” do sistema.

 

O problema é que nos focamos demasiado nesta direita trauliteira e em André Ventura e temos pudor em olhar para o outro lado. Porque é do outro lado que estão as razões sistémicas que criam este “apoio cego”, esta defesa indefectível “no matter what” destes líderes pós-fascistas. Para um apoiante de André Ventura o que é incompreensível é que um Estado tenha gasto mais de 20 mil milhões de euros a salvar um banco, enquanto o seu ordenado é cortado. Que o serviço público de saúde esteja a ser desmantelado enquanto se multipliquem hospitais privados luxuosos. Que a sua pensão não saia da cepa torta, enquanto empresas milionárias escondem dinheiro em offshores. Que os seus filhos andem de trabalho precário em trabalho precário enquanto os administradores da Delloite recebem prémios anuais de 1 milhão de euros para pagarem menos impostos. Que pagam a eletricidade mais cara da Europa enquanto o Estado chinês lucra milhões com um monopólio que era de todos. Que tenham de ser expulsos da sua cidade enquanto se vendem apartamentos a estrangeiros em troca de um visto gold. Que tenham de fazer turnos na empresa ou trabalhar bem para lá do horário quando lhes dizem que a sua produtividade é baixa. Que lhes digam que a economia está de boa saúde e ao mesmo tempo que não há dinheiro para si! Que a culpa disto tudo é deles, porque viveram acima das suas possibilidades, porque não foram suficientemente empreendedores, porque têm direitos a mais.

 

Sim, é difícil, é complicado, incomoda. Mas é porque as desigualdades são cada vez maiores e a redistribuição de riqueza é cada vez menor que todos estes líderes pós-fascistas existem e crescem. É muito difícil identificar a raiz da desigualdade crescente: o gangsterismo financeiro que tem o poder político hipotecado e dependente. Porque se esconde num offshore, numa empresa dentro duma empresa dentro duma empresa, atrás de um CEO de uma sucursal de uma multinacional. Tudo isto parece intocável, imutável. Mais fácil é atacar o imigrante, o cigano, a mulher, o gay, o transexual... arranjar um bode expiatório! Simples! E deixar os gangsters em paz!

 

Não é por mostrar Trump a matar alguém na 5ª Avenida, com uma câmara de alta definição e uma excelente reportagem de fundo que vamos impedir esta onda pós-fascista e revanchista. É ao sermos ainda mais fortes, mais arrojados, mais combativos por aquilo que de facto importa: a segurança do salário, do emprego, da pensão, do serviço de saúde, da escola e da casa. E estar lado a lado com toda esta gente que está farta que lhes digam que o seu trabalho o deve ao patrão, que a economia está acima deles e que a sua vida é um favor que alguém importante lhes faz.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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