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Ainda sobre a Web Summit… e o Ensino Superior em Portugal

O que é que o espírito que advém da Cimeira Tecnológica tem de tão similar com a atual situação laboral no Ensino Superior em Portugal?

Na semana passada, na mesma altura em que o país reagia, revoltado, à relação entre o lucro obtido e o número de trabalhadores não remunerados na Web Summit, o jornal Público noticiava números relativos aos professores do Ensino Superior que dão aulas de borla. A promessa é, um dia, poderem vir a ser um Paddy Cosgrave da Academia. Não passa de uma ilusão.

Os números são sempre imprecisos quando a precariedade se veste de tantas tipologias de contratação diferentes. Mas comecemos pelo início. O crescimento da proporção dos docentes convidados (alguns sem remuneração) é assinalável: tendo passado de 30% em 2012 para 42% em 2018. Se juntarmos a esta realidade, todos os bolseiros de investigação, que também dão aulas sem receber por isso, a percentagem de docentes de carreira para cumprir os rácios estipulados por lei é ainda mais deficitária, senão mesmo insignificante no bolo geral.

Se atendermos à gravidade destes números e, juntarmos a isso, a balbúrdia criada pelo Governo e pelas direções das Instituições com as progressões remuneratórias, rapidamente se desenha uma pirâmide cada vez mais hierárquica no seio do sistema. Se quase metade dos docentes são contratados à margem da carreira e, entre aqueles que estão ao seu abrigo, somente um quinto chegou ao topo (ao contrário dos rácios determinados por lei), pode-se afirmar que há uma desigualdade não só salarial, não só de condições de trabalho, mas também de poder.

O Bloco de Esquerda, logo após a instalação da Comissão de Educação, Ciência, Juventude e Desporto (CECJD), apresentou um requerimento para ouvir o Ministro Manuel Heitor sobre os números agora públicos e no sentido de justificar uma das suas últimas declarações: “Ministro entende que dar aulas sem receber não aumenta precariedade”.

Acredito que o tutelar da pasta, mesmo sabendo que é um entusiasta do modelo social promovido na Web Summit, não terá o “rasgo político” de afirmar que o Ensino Superior será cada vez melhor quanto mais “trabalho voluntário” promover no seu seio. Não o faz por uma simples razão: escolha dos termos é mais requintada. Não são voluntários, são “convidados”.

O que é que o espírito que advém da Cimeira Tecnológica tem de tão similar com a atual situação laboral no Ensino Superior em Portugal? Tanto num caso como no outro, parece existir uma entidade, num caso apoiada, no outro depende do Estado, alegadamente recomendada e de prestígio, montra do progresso que o país é capaz de promover, mas baseada em trabalho não remunerado. Uma imagem de um país de computadores do século XXI e práticas laborais do século XIX.

Sobre o/a autor(a)

Museólogo. Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto
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