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Acordos e golpadas

Depois de permanente instabilidade e sucessivas eleições, Espanha foi novamente a votos e encontrou uma solução mitigada.

O acordo entre PSOE e Unidas Podemos, embora histórico, não resolve a questão da governabilidade. Mas é indiscutível que traça um horizonte novo de entendimento à Esquerda com soberanistas e independentistas, naquele que será o primeiro Governo de coligação à Esquerda desde a II República espanhola.

Para o nosso consumo interno, cheira a produto bruto. O cenário espanhol ultrapassa a crise pela esquerda e inicia uma etapa de novas convergências há tanto tempo adiadas por Pedro Sánchez. Já à luz da nossa realidade comparada, "nuestros hermanos" ultrapassam-nos pela direita a velocidade vertiginosa. António Costa preferiu a navegação à vista, fingindo procurar entendimentos que nunca desejou. Por menos, para continuarem minoritários, os espanhóis conseguiram ir mais longe. Em poucas semanas, a "geringonça" foi aos caramelos e prova-se ao lado.

Há quatro anos e cinco dias, a morte anunciou-se prematura em Portugal no dia um da "geringonça". É com júbilo que vemos como os analistas políticos e económicos espanhóis não reagem com semelhante desdém ao observar a nova solução governativa que agora se ensaia em Espanha. A instável fatalidade dos acordos à Esquerda, anunciada pela maioria dos analistas portugueses, esbarrou na clarividência das forças políticas intervenientes em perceber que o "agora" era a sua responsabilidade e o "nunca" a sua impossibilidade. Uma ideia de recuperação, progresso e estabilidade. A lição que Pedro Sánchez e Pablo Iglesias nos dão é a de que, face ao perigo da extrema-direita, é possível aprender. Nunca - para além de impossível - é tarde.

Aprender em democracia é ideia que devia ser preservada como valor primordial. Algumas coligações informais de interesses, ainda que à luz dos actuais regimentos, mostraram dificuldade em lidar com a necessidade de dar voz aos pequenos partidos nos debates quinzenais nas Assembleia da República. Houve acordo. Atempadamente corrigido, eis um excesso de legalidade - com alguma soberba - que podia violar as regras democráticas de bom senso e permitir um quadro de vitimização aos deputados solitários. Não pode haver duplicidade, golpes ou golpadas. Apesar de sabermos como alguns regozijam com o assalto ao poder de Jeanine Añez e demais fantoches na Bolívia, carregando "a Bíblia que volta ao Palácio", convém não espelhar os tiques não democráticos de quem considera que na Bolívia não está em curso um conspirativo golpe civil militar.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 15 de novembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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