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Vila Galé: um resort sobre sangue indígena?

Nos territórios onde o grupo hoteleiro português Vila Galé pretende instalar o resort vivem há mais de 400 anos os Tupinambá. Os episódios que precederam o anúncio deste “investimento” são obscenos.

Quando o presidente Bolsonaro tomou posse, declarou com pompa e circunstância que não iria abrir mão “da explorar a Amazónia”. Não foi por isso coincidência que algumas das suas primeiras medidas tenham sido no sentido de não fazer mais demarcação das terras dos indígenas (é a demarcação que as torna áreas reservadas, protegidas da venda em lotes ou da exploração pelo agronegócio) e mesmo de reabrir alguns processos em curso - é “muita terra para pouco índio”, justificou o presidente brasileiro.

Depois vieram os incêndios e o o ecocidio associado, a desagregação do Fundo de proteção da Amazónia e das regras que garantiam as contribuições de outros países (a polémica com a França foi só a face mais deplorável desse processo), o entusiasmo com a mineração e o desmatamento, os assassinatos de líderes indígenas - como aconteceu esta semana com dois Guajajara.

É neste ambiente político que o grupo hoteleiro português Vila Galé anuncia agora um empreendimento para uma área de mangue na Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Nos territórios onde o grupo pretende instalar, entre outras coisas, 500 quartos, 6 restaurantes, um Centro de Convenções e Eventos, um Clube de Crianças com Parque Aquático e um SPA com piscina interior aquecida, vivem há mais de 400 anos os Tupinambá, um povo que tem hoje cerca de 4600 pessoas, com um modo de vida no qual o rio, a pesca artesanal e o manguezal que a empresa portuguesa pretende ocupar desempenham um papel central.

Os episódios que precederam o anúncio deste “investimento” são obscenos. A empresa de turismo do Brasil (a Embratur) enviou um ofício escrito à Funai (Fundação Nacional do Índio, o órgão do Estado incumbido de garantir a proteção das comunidades indígenas), a fazer pressão para que esta interrompesse o processo de demarcação daqueles territórios. Um membro do Governo brasileiro (é preciso lembrar que o Minsitro da Justiça e o Presidente têm a última palavra na demarcação) anunciou nas redes sociais o projeto - ainda não aprovado definitivamente - saudando o seu valor económico. Confrontada com as notícias e com a mobilização da comunidade internacional contra o incalculável estrago ambiental e contra a ameaça gravíssima à sobrevivência daquele povo que este projeto significaria, os responsáveis portugueses da Vila Galé atiram-se para o mais irresponsável dos negacionismos: aquela zona ainda não teria sido demarcada nem haveria ali habitantes. Um argumento extraordinário, tendo em conta que o processo de demarcação está a ser interrompido com o lóbi da própria empresa portuguesa e que a inexistência de casas na área do pantanal não significa que esta não seja parte fundamental do modo de vida daquela comunidade.

O que aqui está em causa é um processo violento de ocupação e de destruição dos modos de vida capazes de proteger a Amazónia. Como insistia a líder indígena Sónia Guajajara por estes dias em Lisboa, 5% de indígenas protegem 80% da biodiversidade do mundo. Destruir os seus territórios, expulsá-los das suas comunidades para plantar mais um resort turístico não é apenas uma decisão de vistas curtas ou uma expressão de como o padrão colonial perdura e continua a manifestar-se cruel e brutalmente, agora embrulhado de “investimento estrangeiro”. É mais que isso. É um crime contra a Humanidade, que nos envergonha a todos, que deve ser travado por todos os meios e ao qual não podemos ficar indiferentes.

Artigo publicado em expresso.pt a 8 de novembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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