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Trabalho e igualdade salarial

Para trabalho igual ou equivalente ainda há salário desigual e, pasme-se, parece que não há vergonha nenhuma nisso, mesmo sabendo-se que a lei está a ser violada.

Assinalou-se esta segunda-feira o Dia Europeu da Igualdade Salarial entre homens e mulheres. Os números do Gabinete de Estratégia e Planeamento (Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social) referidos indicam que a desigualdade salarial, mesmo que timidamente, tem vindo a descer, situando-se, em 2017, a média de Portugal em 14.8% e a da União Europeia em 16%.

Vários dos artigos publicados caracterizam a desigualdade salarial: apesar das mulheres serem hoje mais qualificadas do que os homens, essa qualificação não se reflete nos cargos que ocupam nem nas remunerações que auferem, pelo contrário, a qualificação agrava a desigualdade, provando-se que a retórica meritocrática não passa disso mesmo, de retórica. Muitos empregos continuam segregados, correspondendo aos que são maioritária – ou esmagadoramente – desempenhados por mulheres um menor reconhecimento e valorização sociais e um mais baixo salário, se comparados com trabalhos equivalentes.

Para trabalho igual ou equivalente ainda há salário desigual e, pasme-se, parece que não há vergonha nenhuma nisso, mesmo sabendo-se que a lei está a ser violada, se repararem, por exemplo, numa reportagem sobre as vindimas no Douro transmitida recentemente. Porém, todos os artigos que li e todos os estudos para que me remeteram não referem um aspeto do meu ponto de vista fundamental: como se chegou a esses números? Num desses artigos, é explicitado que o indicador do Eurostat para o estudo é o unadjusted gender pay back, o qual avalia a diferença entre os ganhos médios brutos, por hora, de homens e de mulheres que trabalham por conta de outrem em empresas com dez ou mais pessoas. Em Portugal, é o Gabinete de Estratégia e Planeamento que faz os cálculos a partir de informação fornecida pelas empresas.

Não sou especialista, mas, observando e refletindo sobre os números apresentados, uma ideia imediatamente me assalta: o retrato é incompleto, se este for o instrumento de medida, porque há muitas mulheres precarizadas e que trabalham no setor informal – sem vínculo contratual –, outras trabalham por conta própria (12%) ou em empresas com menos de 10 trabalhadores (96% das empresas do setor não financeiro têm menos de 10 trabalhadores e representam 98.5% do tecido empresarial português), e insuficiente, se o nosso objetivo for conhecer, para combater, a particular vulnerabilidade das mulheres ao desemprego, à precariedade e à pobreza. Ou seja, o retrato é mau, mas a análise permite intuir que a realidade pode ser muito pior e que, aparentemente, não a conhecemos.

Ora, se a maioria das mulheres poderá não está abrangida por estes estudos, a visão que temos da realidade é truncada e as políticas de combate às desigualdades arriscam-se a ser desajustadas. O desacerto dos números torna-se ainda mais evidente consoante as fontes consultadas: os números do Gabinete de Estratégia e Planeamento, relativos a 2017, dizem que a disparidade salarial é de 14.8%, mas os números apresentados pela Comissão Europeia, relativos ao mesmo ano, dizem que, no nosso país, ela é de 16.3%. Já a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género refere um estudo, ignorando-se a data de publicação, que situa a disparidade salarial em 15.8%.

Conhecer a realidade é, pois, a exigência mínima para que o combate às desigualdades não seja uma proclamação bem-intencionada, com dia e hora marcados, mas vazia. Um Governo só pode dizer-se empenhado no combate às desigualdades se conhecer a realidade do país. Por isso é tão importante, de forma abrangente e multidisciplinar, mapear o trabalho feminino nas suas múltiplas dimensões, pois só assim é possível construir políticas capazes de responder a esta desigualdade tão determinante na vida e na autonomia das mulheres (o salário é central, por exemplo, no processo de capacitação das mulheres para romperem com situações de violência).

E incluir o trabalho doméstico e dos cuidados – remunerado e não remunerado – nas ponderações sobre políticas salariais e de rendimento e/ou sobre horário de trabalho é uma necessidade, se quisermos evitar que o futuro repita o presente: o rosto da pobreza é feminino, as mulheres representam o maior contingente dos trabalhadores que ganham o Salário Mínimo Nacional, dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção e do Complemento Solidário para Idosos.

Publicado em publico.pt a 5 de novembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Editora, ativista feminista, membro do coletivo feminista A Coletiva
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