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O(s) problema(s) das urgências

Abordar o problema das urgências hospitalares carece de uma cuidada reflexão, aliada a muita capacidade de iniciativa.

O estado em que se encontram a maioria das urgências já não se resolve com medidas simples ou avulsas – anunciar dinheiro ou novas contratações só serve para paliar um problema com raízes profundas e causas múltiplas. Só com políticas estruturadas, coerentes e assertivas é possível contornar o caos em que mergulham todos os dias, profissionais e utentes que habitam a porta de entrada mais utilizada do SNS.

Só com políticas estruturadas, coerentes e assertivas é possível contornar o caos em que mergulham todos os dias, profissionais e utentes que habitam a porta de entrada mais utilizada do SNS

A enumeração que aqui faço das causas do caos nas urgências pode dar a falsa ideia de uma “lista de tarefas” para resolver. Na verdade, não é possível hoje conseguir “tapar” um destes problemas, sem “destapar” outro. A tarefa é uma só: resolvê-los a todos de uma só vez e de forma integrada. Caso contrário, a curto-prazo, todos eles ressurgirão novamente, porque estão definitivamente interligados. Ainda assim, a enumeração é útil, para mostrar a dimensão do trabalho que temos pela frente:

● Cuidados de Saúde Primários: utentes sem médico de família só têm as urgências para resolver problemas. Mas não são os únicos. Com o aumento das listas de utentes de cada médico de família, de 1.500 para 1.900, imposto pelo governo da Troika e não revertido até à data, torna-se muito mais difícil criar ou prolongar consultas de atendimento urgente nos centros de saúde ou USF. Mesmo com médico de família atribuído, não é fácil conseguir uma consulta para resolver um problema urgente.

As urgências especializadas são outro problema: pediatria, ginecologia, dermatologia e psicologia são áreas cuja presença nos cuidados primários pode ajudar a desobstruir as urgências hospitalares.

São, por isso, precisos mais médicos de família, é verdade. Mas esta verdade não chega: os médicos de família precisam de ter menos utentes nas suas listas, para poderem ter mais tempo com cada uma das famílias que lhe são atribuídas, incluindo situações de urgência ou doença aguda.

● A crescente falta de especialistas na urgência: é apenas um reflexo da crescente falta dos mesmos em todo o SNS! Só que as urgências sofrem em primeiro lugar: médicos com mais de 55 anos não fazem urgências, se não há renovação dos profissionais, é na urgência que se começa a sentir a sua falta. O resultado é, para além da escassez de recursos humanos, uma sobrecarga adicional sobre os “novos” especialistas que têm de dividir as horas extraordinárias na urgência por cada vez menos colegas. Hoje, quando se abrem concursos para contratar novos especialistas em determinadas especialidades (essenciais aos serviços de urgência) como Medicina Interna, Anestesia ou Pediatria, são cada vez menos os interessados em concorrer, porque já sabem à partida que vão ser sobrecarregados com o trabalho na urgência, em detrimento de tudo o resto para o qual foram formados. Em 2019, 84% das vagas colocadas a concurso para o Alentejo ficaram para preencher e 28% de todas as vagas de Ginecologia/Obstetrícia a nível nacional ficaram desertas!

● A contratação de médicos externos para as urgências: este é um problema já com, pelo menos, 2 décadas! À falta de recursos humanos, abriu-se a possibilidade de contratação de “médicos à hora”. Só que a solução em lugar de ajudar, piorou o problema. Médicos externos ao hospital gastam mais tempo e utilizam mais recursos para tratar um doente do que os “médicos da casa”. O trabalho de equipa na urgência desestrutura-se e a ineficiência aumenta. A agravar o problema, estes médicos externos ganham muito mais à hora do que os “médicos da casa”. Isto resultou em desmotivação das equipas, com os “médicos da casa” a estarem cada vez menos disponíveis para o trabalho extraordinário e a quererem eles próprios serem “médicos à hora” no hospital do lado, onde a remuneração é muito superior. Conclusão: gasta-se mais em contratação de serviços externos, gasta-se mais recursos na urgência, sem que isso signifique melhoria no atendimento aos doentes, muito pelo contrário! Este é um exemplo perfeito de como resolver um problema isoladamente, sem o integrar com os restantes problemas existentes, pode piorar em vez de atenuar esse mesmo problema.

● A profissionalização das urgências: um caminho seguido por uma parte importante dos grandes hospitais com a criação de equipas fixas. A ideia é simples: ter profissionais médicos dedicados ao serviço de urgência ajudaria a mitigar a falta de recursos e otimizar o funcionamento do próprio serviço. Só que em Portugal só fizemos metade do caminho. Criámos equipas fixas com números insuficientes de elementos, que não conseguem assegurar o serviço 24/24h e não demos o passo mais importante que era “especializar” estes médicos, criando a especialidade de “emergência médica”. Fruto de bloqueios diversos em alguns colégios de especialidade da Ordem dos Médicos, nunca avançamos para aquilo que já se faz na maior parte dos países da OCDE. Uma “solução a metade” cria mais problemas do que resolve: “novos especialistas” forçados a ficar em equipas fixas em troca de contrato, urgências diurnas com equipa fixa e noturnas com equipas rotativas, remunerações díspares entre elementos com responsabilidades semelhantes... Portugal tem meia centena de especialidades médicas, algumas tão específicas como a Medicina Desportiva, a Medicina Nuclear ou a Medicina do Trabalho, não se entende a ausência da Emergência Médica.

Não serão estes os únicos problemas das urgências, uma vez que elas são o centro nevrálgico do SNS, mas contam-se entre os principais. Como se pode rapidamente perceber é nos recursos humanos que estão centradas as principais soluções. E é isso que justifica a necessidade imediata de uma estratégia nacional para os recursos humanos no SNS – uma estratégia nacional e arrojada que perceba que sim, é preciso mais investimento e mais contratações, mas que não bastam.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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