You are here

Argentina: derrota anunciada de Macri num país destroçado

As eleições deste domingo 27 na Argentina devem confirmar o resultado das primárias de 11 de agosto e dar a vitória, possivelmente já na 1ª volta, ao peronista Alberto Fernández. O fim do governo de Maurício Macri marca a derrota de um dos principais aliados de Trump e de Bolsonaro no continente. Dossier organizado por Luis Leiria.
Argentina, Alberto Fernández e Cristina Fernández Kirchner - Foto de Julio Gelves/Epa/Lusa
Argentina, Alberto Fernández e Cristina Fernández Kirchner - Foto de Julio Gelves/Epa/Lusa

No próximo domingo realizam-se na Argentina eleições a vários títulos inéditas. Em primeiro lugar, porque já desde agosto que são conhecidos os seus resultados, no que diz respeito à eleição do presidente. De facto, no dia 11 de agosto ocorreram eleições primárias que assinalaram uma pesada derrota do atual presidente Maurício Macri frente ao peronista Alberto Fernández, com uma diferença de 16 pontos. As eleições primárias obrigatórias são uma originalidade argentina que existe desde 2011. São organizadas pela Justiça eleitoral e de participação obrigatória para os eleitores. Estas últimas tiveram 75% de participação do eleitorado.

A diferença tão grande entre os dois candidatos é, concordam todos os analistas, impossível de reverter. Isso significa que, desde esse dia, Macri perdeu qualquer autoridade para governar; mas que, por outro lado, Alberto Fernández ganhou essa legitimidade mas não pode formar governo. Ambos foram obrigados a esperar pelo dia 27 de outubro. Mais: ambos tiveram de prosseguir com as suas campanhas eleitorais, já que a eleição que conta é a do próximo domingo. Um esforço completamente inútil: somente algo completamente inesperado e com as dimensões de uma catástrofe poderia alterar a confirmação do resultado das primárias.

O diário argentino Clarín teve acesso a 29 sondagens realizadas desde a data das primárias até 18 de outubro. Destas, 27 preveem a vitória de Alberto Fernández e por uma diferença maior, sem necessidade de segundo turno.

O fracasso de Macri é um marco importante para a política em todo o continente. O ainda presidente da Argentina era aliado próximo de Trump e de Bolsonaro. A sua derrota enfraquece ambos, num momento em que o presidente norte-americano vive um mau bocado face às investigações que podem chegar ao seu impeachment, e em que o presidente brasileiro está envolvido numa guerra interna que pode esfacelar o seu próprio partido.

A não eleição de Macri significa também a derrota da sua política ultraliberal que levou o país à bancarrota, com custos pesadíssimos para a população. A Argentina que ele deixa ao seu sucessor é um país destroçado e a viver uma tragédia social. As desvalorizações, os aumentos brutais das tarifas dos serviços públicos e a penalização dos rendimentos populares fizeram disparar a pobreza para 35,4%, podendo chegar a 40% no final deste ano. Num dos principais países exportadores de alimentos, existem cinco milhões de pessoas que não têm acesso ao consumo básico. O balanço é devastador e veio também pôr em evidência como o Fundo Monetário Internacional, diante do desastre provocado pelo governo Macri, atuou para tentar salvar o seu aliado local da derrota eleitoral, concedendo-lhe o maior empréstimo de sempre a um país, com entregas de parcelas mais volumosas perto das eleições. Só que nem assim evitaram a débacle eleitoral. A conta final será apresentada ao novo presidente.

Não que Alberto Fernández dê garantias de promover uma reestruturação da dívida, muito menos uma auditoria. Pelo contrário, ele já disse que pagará tudo e que apenas precisa de prazos maiores. O governo do candidato de um peronismo que volta a surgir unificado na Argentina, depois de muitas desavenças, não será nem de perto um governo de esquerda. Mas deixará de haver na Casa Rosada, a sede da Presidência da República em Buenos Aires, um ponto de apoio incondicional a Trump e a Bolsonaro. E isto num momento em que outro incondicional, Sebastián Piñera, passa por grandes dificuldade.

A verdade é que o fracasso das políticas ultraliberais aplicadas por governos latino-americanos após as vitórias eleitorais de partidos conservadores, ultraliberais e até de programas neofascistas, está a ser muito rápido. Na Argentina esse governo não foi além de um mandato.

“América Latina inundada por protestos e levantes”, titulava o Miami Herald de domingo 20 de outubro. “Enquanto Washington se concentra no impeachment, na Síria e nas eleições presidenciais, a América Latina e as Caraíbas, uma vez mais, parecem estar a desmoronar.” O jornal enumera os protestos no Peru, Equador, Haiti e Honduras para afirmar que os sinais de complicações foram ignorados por Washington, ou ficaram perdidos no meio da prioridade dada pela Casa Branca à Venezuela e a Cuba.

A Argentina não teve um levante como o Equador ou o Chile, mas a explicação de fundo da derrota de Macri está na força da resistência da classe trabalhadora contra a ofensiva do governo. Resistência que tem na mobilização feminista um dos seus pólos mais dinâmicos, como ficou demonstrado duas semanas antes das eleições pelo maior encontro feminista jamais realizado no mundo.

Neste dossier, juntamos uma entrevista e artigos de várias proveniências que aprofundam o panorama esboçado acima. Boa leitura!

(...)

Neste dossier:

Argentina, Alberto Fernández e Cristina Fernández Kirchner - Foto de Julio Gelves/Epa/Lusa

Argentina: derrota anunciada de Macri num país destroçado

As eleições deste domingo 27 na Argentina devem confirmar o resultado das primárias de 11 de agosto e dar a vitória, possivelmente já na 1ª volta, ao peronista Alberto Fernández. O fim do governo de Maurício Macri marca a derrota de um dos principais aliados de Trump e de Bolsonaro no continente. Dossier organizado por Luis Leiria.

Protesto em Buenos Aires em setembro de 2019. Foto de EPA/Fabian Mattiazzi, Agência Lusa.

Argentina: Derrota de Macri cria uma nova relação de forças sociais

A vitória anunciada do peronista Alberto Fernández representa uma mudança de relação de forças sociais na Argentina. No terreno internacional, a saída de Macri trava o realinhamento impulsionado por Trump com o Grupo de Lima. O Esquerda.net entrevistou Aldo Casas e Juan Carlos Fernández, do Conselho de redação da revista Herramienta. Por Luis Leiria.

Macri não pôde transferir a crise para o próximo presidente e deixará uma economia em ruínas

Argentina: Dívida, FMI e auditoria num contexto inédito

Macri não pôde transferir a crise para o próximo presidente e deixará uma economia em ruínas. Ele livrou-se da antecipação das eleições e de enfrentar uma rebelião popular semelhante à do Equador, mas desapareceu no final do mandato. Por Claudio Katz.

Uma "villa miséria" (bairro de lata) em Buenos Aires. Foto publicada por Buenos Aires Photographer em https://www.flickr.com/photos/22185138@N00/3862245608

Eleições na Argentina: certezas, evidências, incógnitas e um mar de dificuldades

A incerteza política foi afastada. Por outro lado, as dimensões económica e social indicam que o caminho para o dia 27 de outubro segue à beira do precipício e as margens de manobra para após o dia 10 de dezembro são muito estreitas. Por Eduardo Lucita.

A Bolsa de comércio de Buenos Aires. Foto de By Antonio García from Madrid, Spain CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2582373

Argentina: os mercados cercam a democracia

Nas urnas, população goleou política quase idêntica à de Bolsonaro. Um dia depois, oligarquia financeira deflagra crise cambial e sugere: “agora, quem vota somos nós”. Vêm aí lances decisivos para o futuro da América do Sul. Artigo escrito logo a seguir às eleições primárias de 11 de agosto por Antonio Martins, Outras Palavras.

Manifestação contra os aumentos de tarifas promovidos por Macri. Foto de Banfield.

Argentina: O escândalo dos aumentos de tarifas

Os ganhos das principais empresas privadas que gerem os serviços públicos somam 3.525 milhões de dólares entre 2016 e 2018. Significa que ganharam 3,2 milhões de dólares por cada dia de governo macrista. Há cada vez mais famílias que não conseguem pagar as contas, mas os empresários ganham mais. Por Mónica Arancibia, La Izquierda Diario.

Centenas de milhares de pessoas de toda a América Latina e outras partes do mundo reuniram-se por três dias para discutir questões feministas / Foto Marcha Noticias

Edição histórica de Encontro de Mulheres reúne centenas de milhar na Argentina

Durante três dias, milhares de militantes discutiram bandeira plurinacional, aborto legal e construção da luta feminista, compartilharam experiências, construíram redes e participaram de discussões para fortalecer a luta feminista e dos movimentos populares internacionalmente. Peoples Dispatch

Silvia Federici: a Argentina é o país do mundo onde o feminismo está no ponto mais alto.

Silvia Federici: “As redes de mulheres na Argentina são únicas no mundo”

A professora feminista destacou o trabalho em rede que se desenvolve no país, tanto em relação ao aborto (Socorristas en Red - Socorristas em Rede) como o dos sindicatos (Intersindical Ni Una Menos - Nem Uma A Menos). Analisou as experiências comunitárias, coletivas e internacionais como alternativas de resistência perante o sistema capitalista, patriarcal e global.