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A solução Natália Correia para enfrentar a técnica Ventura

Antes de se atirar contra alguma frase venturista ou de levantar a sua indignação contra o que ele vai fazer todos os dias, pergunte-se como diria Natália Correia, que poema leria ou que imagem apreciaria.

Não há motivo para demasiada surpresa. Se havia uma hipótese de uma extrema-direita pôr o pé na porta e entrar, era esta, com um doutor de leis, vindo de um dos grandes partidos e em que já foi candidato a alguma coisa, alcandorado ao seu módico de fama por uma televisão em que exerce o mister de comentador de futebol, função que algumas vezes consegue ser a que mais se aproxima do porradismo que agora o elegeu. Foi comovente a queixa do PNR sobre o tal arrivista que lhe roubou as bandeiras e o lugar ambicionado, mas este era outro campeonato, é normalmente dos grandes partidos que emerge a extrema-direita viável e não de seitas esotéricas. Para mais, é nesses partidos que tem mais impacto o deslizamento cultural da direita, agora trumpizada em alegações contra os direitos das mulheres, a tal “ideologia de género” (mantra repetido numa ala do PSD), ou contra os migrantes e refugiados ou mesmo outros argumentos sobre direitos que “querem destruir todo o nosso modo de vida” (como se dizia num comício do CDS). A cultura tribal, que faz o sucesso eleitoral de extremas-direitas em diversas partes do mundo, intoxica a política desde que o medo e o ressentimento possam grassar, seja em microescala, como para já entre nós, seja com vocação maioritária, como noutros países em que não houve uma esquerda que disputasse a representação nacional. O seu sucesso depende portanto da amplitude dessa cultura de medo.

Não há então motivo para surpresa, mas nem muito menos para pânico. Não está escrito que um pequeno partido de extrema-direita tenha espaço para crescer. Quanto a pequenos partidos, já houve muitos que fracassaram, incluído nas recentes eleições, e alguns tinham mais pedigree do que Ventura. E extrema-direita alguma cresceu em Portugal até agora; até se deve dizer o contrário, que os partidos cuja ideologia de direita era mais exuberante na evocação de valores antidemocráticos se foram adaptando a uma lógica situacionista. Os radicais do CDS, que em tempos fizeram carreira condenando indiscretamente os “privilégios” do RSI, para apontarem aos ciganos mesmo sem dizerem a palavra, acabaram em eurocontentes e em governantes logo bem instalados em conselhos de administração.

O que há de diferente com Ventura? Só o sinal dos tempos e nada mais. Ele sempre foi o que tinha de ser: passista quando necessário, candidato e devoto do PSD dos quatro costados, manobrador nas disputas da sucessão e até santanista, uns tempos favorável ao sistema ou depois antissistema, consoante se ajeitava. O fato do dia foi fazendo a cor do cavalheiro. Ora, se o que o distingue não é a ideia mas a conveniência, a primeira consequência é que o debate com Ventura não é ideológico, nem sequer de ideias, ele não usa disso. É só sobre medos. Enfrentem-se os medos e não sobra Ventura. Deixe-se os medos grassar, acrescente-se uma pitada de riscos económicos e de laivos de austeridade, para mais com uma União Europeia que parece querer esfrangalhar-se, e teremos as extremas-direitas a crescer, seja Ventura seja o próximo aventureiro. Só uma política social determinada e obsessiva em alcançar resultados pode evitar a degradação da vida democrática, com pão, saúde e segurança na vida das pessoas em vez de ódios e sustos.

Segunda consequência: se nada o preocupa quanto à apresentação de propostas para o país, se lhe é indiferente o que acontece à nossa gente, é só o estilo que fabrica o Ventura. O estilo é o homem: tonitruante, gritante, apontante, tudo à futebol rasteiro. Ele precisa de frases fáceis para não se notar a tropa maltrapilha que marcha com ele; precisa de acusar, para não se saber que se acompanha de quem foi condenado por crime cometido; precisa de gritar, pois não quer ser ouvido, só quer amedrontar.

Pode-se responder a isto de duas formas. A primeira é a que ele deseja, é levá-lo à letra e mostrar receio dele. Seguindo esse caminho, haveria que dramatizar, adivinhando que cada aleivosia venha a ser tremenda em consequências, que cada ação seja uma viragem assustadora do destino pátrio, ou ainda que cada manobra venturista abra as portas ao mundo das trevas. Assim atemorizada, a esquerda tornar-se-ia uma espécie de imagem do espelho de Ventura, respondendo a cada dichote e correndo para a rua a cada meneio. Ele faz uma petição, nós fazemos outra. Ele esbraceja, nós gesticulamos. Ele ameaça, nós levantamos a voz. Tudo ela por ela, essa é a primeira resposta possível, o modo pânico. Ora, entre Ventura engravatado no Parlamento e milícias a desfilarem na rua para atacarem as lojas dos judeus ou dos nepaleses ainda vai uma grande distância. Só que há gente apavorada e que pode acreditar neste destino. Ele está à cata da sua cooperação, não será nada sem esse efeito de ampliação, precisa do medo acerca do medo, já que ainda lhe falta medo. No negócio de Ventura, só há estilo e só a exuberância conta, mas são precisos dois para dançar essa valsa. Por isso, ele procura parceiros e, se alguém se oferece, pensando que assim o seu partido reluz, ganha muitos likes no Facebook e se exibe como o herói revolucionário que faz peito ao herói reacionário Ventura, estará a fazer um favor à extrema-direita e a oferecer-lhe o que ela necessita. Para um bobo da corte, oferece-se um antifascismo declarativo e emproado. Só que tal nervosismo seria uma irresponsabilidade.

Há outra resposta e é a que hoje é forte e eficaz (noutros tempos outros remédios poderão ser requisitados para a resposta democrática, mas ainda não há por aí milícias à solta, nem Mussolini ou Salazar renasceram, pois não?). Agora é simplesmente tratá-lo como o que ele é: um mestre de cerimónias que quer fazer carreira deitando lama para todo o lado e que vale 1% do eleitorado. Para a comunicação social, isso significaria fazer a notícia do que é noticioso e ignorar o que é armadilha. Não vai ser fácil, vai por aí muita ânsia de fazer de S. Bento um Coliseu de Roma. Para os frequentadores das redes sociais, isto significa não partilhar tiroteio, não clicar demasiado depressa e pensar primeiro, não ajudar a espalhar o ódio e, antes de responder a alguma provocação, que será o dia a dia, perguntar se vale a pena comentar e abundar no que nunca nos ocuparia em qualquer segundo da nossa vida. E, mais importante, se responder, fazê-lo da única forma que interessa e que é merecida, com humor crítico. Vá lá, somos excelentes nisso. Fotomontagens, memes, poemas, músicas, anedotas, trocadilhos, contos, adivinhas, inundem-se os dizeres da extrema-direita com o afago do humor.

Lembram-se do poema de Natália Correia sobre o ilustre deputado Morgado no debate sobre o aborto? Foi ela quem ditou a sentença e ele quem a mereceu. Antes de se atirar contra alguma frase venturista ou de levantar a sua indignação contra o que ele vai fazer todos os dias, pergunte-se como diria Natália Correia, que poema leria ou que imagem apreciaria. Seja Natália Correia. É que não há melhor forma de destruir o que não é sério do que tratá-lo como o que é realmente. O modo de sarcasmo em vez do modo de pânico é agora a resposta mais forte no espaço mediático e da opinião pública.

Quanto ao espaço da vida social, o que afinal importa mais do que tudo, democracia e direita, como também extrema-direita, medem forças no salário, na pensão, na escola dos filhos, na renda de casa, nas comissões bancárias, no combate à corrupção. Mas não foi sempre assim?

Artigo publicado no expresso.pt a 15 de outubro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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