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O drama curdo

Enquanto em Portugal se contavam os votos das eleições legislativas, o presidente norte-americano, Donald Trump, ordenava a retirada das suas tropas do nordeste da Síria.

Horas depois, o presidente turco, Erdogan, com quem Trump tinha comunicado antes de decidir abandonar o território, lançava um ataque sobre as forças curdas na região, multiplicando vítimas civis.

Os militares dos EUA apoiavam as Forças Democráticas da Síria, uma coligação multiétnica liderada pelos curdos da região contra o autoproclamado Estado Islâmico (EI). Ao decidir abandonar os curdos, Trump abriu as portas à invasão turca do território curdo na Síria. A Imprensa internacional noticia que, como consequência destes ataques, centenas de membros do Daesh ter-se-ão evadido da prisão onde se encontravam.

Os curdos são o maior povo sem Estado do Mundo. Habitam, na sua maioria, no Curdistão, assim chamado desde o ano 1150: um território que abrange partes da Turquia, da Síria, do Irão e do Iraque. Apesar disso e de várias promessas, nunca lhes foi reconhecido o direito à independência, tendo sido sempre perseguidos, em particular pela Turquia. As forças curdas representam assim a aspiração deste povo à autodeterminação.

Em 2012, um governo autónomo curdo conquistou o controlo do Curdistão da Síria. Este governo tinha ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), única força de Esquerda na região e também a única empenhada na defesa dos direitos das mulheres. Nesta zona da Síria, como no Iraque, foram os curdos que travaram os avanços do Daesh.

A Turquia, pelo contrário, fechou os olhos à expansão do extremismo islâmico na Síria, tendo-se mesmo concentrado em atacar e enfraquecer o exército curdo, através de incursões no norte do Curdistão sírio. Só as tropas americanas impediam que a invasão fosse total, Erdogan teve de esperar a luz verde de Trump no dia 6 de outubro.

Esta é a história da atual mortandade dos curdos, um povo condenado a lutar pela sua autonomia e habituado a ser instrumentalizado pelas potências que querem controlar a região. Um povo agora deixado à sua sorte pelos EUA (que, cumprido o confinamento do Daesh pela força curda, preferem voltar a agradar à Turquia) e pela União Europeia, que ignora mais uma invasão injustificada e mais um ataque aos direitos humanos, enquanto protege o regime de Erdogan. Afinal, é este mesmo Erdogan quem aceita fazer o trabalho sujo da Europa, erguendo campos de concentração para refugiados sírios e outros, verdadeiro tampão que permite à União Europeia seguir com proclamações sobre a paz e os direitos humanos. É mesmo na hipocrisia que a guerra gosta de chafurdar.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 15 de outubro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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